Sobre ser seres luminescentes, dançantes e erráticos

Por Soraya Martins

Reflexões e expansões a partir dos experimentos cênicos “Ensaio sobre a fragilidade”, “Se os homens são feitos de barro, nós somos feitas da lama” e “Emprazar, chamar pra comparecer”.


Foto: Pablo Bernardo

E nesse último dia da temporada, boca não disse palavra. Pra quê? Os corpos estavam lá tecendo todo o discurso via imaginação – mecanismo de produção de imagem para o pensamento-, eles estavam lá, não numa simples representação, aqui ela não cabe. Eles- corpos- estavam lá pensando outras formas de estar negra e negro no mundo. E nós, ali, vimos nesses e desses corpos uma capacidade de resistência histórica, logo, política, em sua vocação para a recriação e sobrevivência. Sobrevivência de vaga-lumes, seres luminescentes, erráticos, dançantes e resilientes que, apesar de tudo – e esse tudo é gigantesco, é doloroso, é traumático, é da ordem das nossas fúrias e melancolias e ressentimentos- desenham constelações.

Das constelações, Ensaio sobre a fragilidade de dois corpos masculinos da negrura fabulando questões, relacionando e compartilhando o sensível: dois corpos em diferença, em relação, que divide um comum da pretura, que não é igual. Execução de movimentos e gestos pontuais, o mesmo bum-bum musical que imprime ritmo e preenche o espaço-tempo dilatado daqueles corpos que se tocam… rostos, pernas, peitos, pés, dedos… os chupam… ele-daquele, aquele-dele, desenhando um infinito que, a partir da diferença, remete às várias instâncias de tensão, do desejo, da fome, da falta, das subjetividades…das fragilidades, que nesse ensaio é tudo outra coisa que não a fraqueza. A minha íris preta capta essa imaginação/produção de imagem do lugar da partilha do sensível, das fissuras e ressignificações da fragilidade a partir da própria fragilidade que entra na disputa por narrativas outras. Por emergência do novo de onde se pode refletir sobre subjetividades, singularidades, quereres, imposições, gênero, questões raciais e sociais, afetos correlatos, traumas e também construir espaços e relações que podem reconfigurar, material e simbolicamente, um território comum sem ser igual. Uma  poética da relação em que está em jogo a capacidade de lidar com as imagens-sentido e incorporar essas imagens ao próprio sentido. Nesse ensaio, o modo de imaginar-tecer imagens- aponta para um modo de fazer uma poéticapolítica.

Saber-vaga-lume. Saber hieroglífico das realidades/identidade(s) constantemente submetidas à censura, à lama…Se os homens são feitos de barro, nós somos feitas da lama reconhece nessa lama uma autoridade no conhecimento que diz respeito a uma história política em devir.


Foto: Pablo Bernardo

Giovanna Heliodoro e Juhlia Santos, dois corpos em diferença que se contrapõem e se reconhecem. Corpos da negrura de duas mulheres trans, corpos enlamaçados, subalternizados.

Desses corpos subalternizados vazam lamas que inscrevem saberes a partir de outras tessituras, ainda que beirando o chão, ainda que se deslocando lentamente dentro do contexto racista e genocida e transfóbico nosso de cada dia, esses corpos vaga-lumes, seres erráticos, no sentido mais potente dessa palavra, desenha constelação. Dizer isso a partir do experimento de Giovanna e Juhlia é afirmar que o modo delas de performar//imaginar a lama é um modo de fazer política. Elas lançam uma luz particularmente viva sobre seus lugares de enunciação. Lançam mão de um performar que se instala com a exposição dos corpos em diferença para depois desvelar, como diz  Tatiana Carvalho, o próprio ato performativo e implodir, por exemplo, as construções sociais acerca do feminino e do masculino: ela tira a calcinha, se lambreca de lama; ela se barbeia/depila na fé cega e amolada da navalha; ela veste uma cueca. Elas não precisam de signos que validem sua(s) identidade(s). Elas mostram as subjetividades de seus corpos e os ressignificam. Corpos-lama. Elas nos convidam para limpar seus corpos sujos de racismo e transfobia. Elas são.  São Juhia e Giovanna produzindo performance que vem à luz com um programa de construção futurista, pedindo outro devir, criando espaços para novas epistemes, novas narrativas. Elas são, pois, um ethos decolonial, senão uma iniciativa epistêmica da produção dos desejos, uma espécie de revolução em constante transmutação que decidem formar uma comunidade de lampejos apesar de tudo, de pensamentos e conhecimentos a transmitir. Elas, imaginação. Elas, política. A imaginação é política!

E sobre o debate pós-experimento.

Podem xs subalternxs falar?

Elas dizem: Nós, Giovanna e Juhlia, “podemos falar”, mas porque estamos num lugar de passibilidade social. “Falamos bem”, “nos vestimos bem”, somos acadêmicas, tivemos possibilidades de acesso. Elas perguntam: vocês escutariam nossas outras manas que estão se prostituindo nas ruas, que “não falam bem”, “não se vestem bem” e não são acadêmicas?

Emprazou…

… para  Emprazar, chamar pra comparecer também entrar para dançar sua dança, buscar sua liberdade de movimento, afirmar seus desejos e emitir seus próprios lampejos. Mais três corpos negros, mais uma vez tudo o que eles representam e tudo que eles ainda podem representar, para além de uma leitura somente política- de extrema importância e urgência-, uma leitura também estética, mediada pela criação. Os três corpos, aqui, dançam a partir de gestos e passos e movimentos de uma dança afrobrasileira já muito decodificada, mas o lampejo vem da tentativa de imprimir o novo vindo dessa decodificação. Essa busca pelo novo, ou melhor, por imprimir uma marca estética singular – também errante, dançante e resiliente – escolhe a linguagem como forma de tensionamento: minha íris preta aprender, para mim passa um filme das quatro temporadas da segundaPRETA em que começamos pensando somente num lugar para apresentar nossas feituras artísticas. Lampejou, lampejou, lampejou… e agora pensamos/fissuramos/reconstruímos também as formas estéticas das nossas feituras. E assim nos construímos seres artistas errantes, vaga-lumes. Esses corpos vão ao passado, e no espaço intervalar entre as memórias e os esquecimentos da(s) cultura(s) negra(s) em diáspora, tensiona os próprios corpos dançantes hoje como uma tentativa, sempre retomada, de uma “fidelidade recriada”. Nasce daí outras possibilidades das corporeidades vir à tona, de invenção das formas, a partir das fissuras, quedas, riscos, subjetividades e singularidades, fragilidades… imagens. Imaginação!

Não assume a imagem, em sua própria fragilidade, em sua intermitência vaga-lume, a mesma potências, cada vez que ela nos mostra sua capacidade de reaparecer, de sobreviver?

Isso é sobre nossas sobrevivências vaga-lumes. É sobre uma tecnologia de aquilombamento chamada segundaPRETA, no feminino.

Foto: Pablo Bernardo


Soraya Martins é Doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Teoria da Literatura pela FALE/UFMG. Graduada em Letras – Licenciatura Português e Italiano – UFMG. Formada no Teatro Universitário (TU – UFMG), cursou Semiologia do Teatro no Dipartimento di Musica e Spettecolo dell´Università di Bologna, Itália. Desde 2011, atua no cenário artístico mineiro como atriz e pesquisadora do teatro negro brasileiro. Escreve críticas teatrais para o blog Horizonte da Cena e para o projeto segundaPRETA. Tem seu currículo trabalhos realizados junto a diversas companhias, entre elas, Companhia Candongas e outras firulas, Grupo do Beco, Caixa de Fósforos e, atualmente, trabalha com o Grupo Espanca.