Sobre memórias ou passado como emergência do novo ou fissuras ou tudo preto de novo

Por Soraya Martins

Uma mirada a partir do espetáculo Black Boulevard ou Tudo Preto de Novo ou Ensaio Geral.

Foto: Pablo Bernardo

Black Boulevard ou Tudo Preto de Novo ou Ensaio Geral ou Quatro artistas-personagens em busca de… E me encontro com Pirandello, com seus cento e cinquenta anos no exato dia em que escrevo – com pena de galhofa, mas não necessariamente com a tinta da melancolia-, essas linhas. Sim, leitor, adoro tudo, ou melhor, uns cinquenta por cento do tudo que li e do pouco que sei sobre teatro italiano. Mas atenção! Não confundam a voz dessa povera narradora com a voz da “crítica”. Essas linhas são sobre ficção. Sobre intertextos. Sobre metateatro, ou seja, sobre personagens que, enquanto personagens de si mesmos num teatro dentro de um teatro, se encontram na articulação da forma – do como encenar seus anseios e desejos sendo atores negros e elaborar a dor e o ressentimento, que marcam o corpo negro da diáspora, como experiência estética –, nós que desempenham uma complexa função construtiva na montagem das cenas.

Rosa Negra. Josephine Baker. De Chocolat. A Companhia Negra de Revista. A revista Tudo Preto. Lembrar. A interrupção e o tempo espiralar como forma de recusar a ideia de um processo cumulativo e progressivo da história. Lembrar de novo. Volta-se ao passado. Lembrar do passado não como enumeração oca, mas como tentativa de apreender o que pedia (nele) outro devir. Um lembrar criador e transformador: retornar ao passado para nele ler a história a contrapelo, performatizar identidades e tecer memória coletiva, tentando pensar numa tradição negra diaspórica que não repousa sobre o nivelamento da continuidade (concepção linear e consecutiva do tempo), mas sobre os saltos, o surgimento, a interrupção e o descontínuo.  Voltar para se certificar que a busca não era por um autor ou dramaturgo, mas sim pela realização do desejo de ser e de encenar Hamlet, o malandro ou a rainha. De humanidade.

A partir do riso, não de um qualquer, mas do riso numa espécie de forma melancólica, no sentido de “rir” da exposição de uma ferida aberta – o racismo-, passado escravocrata que não passa e emerge da montagem das cenas com consciência ainda maior de ferida aberta, os quatro  atores do espetáculo discutem sobre as formas de fazer teatro negro. A arte discutindo si mesma. A arte como lugar em que esse riso “melancólico” se tensiona, buscando criar espaços para novas epistemes e narrativas, microproduções do desejo que interrompe com a passividade.

Existe essencialismo negro, leitor?

“Decifra-me ou devoro-te”. Sim. Comemoro também, reparem bem, desde o início desse texto, esse junho não de Brás Cubas, mas de Machado. Não sei se esse escrito terá cinquenta, vinte ou, quando muito, dez leitores, mas…

Um pingo de retidão crítica a la Machado: “há o entendimento torto de que a produção artística negra se associa, somente, à religiosidade de matriz africana ou a males sociais, lançando muitas das produções num folclore (estático e histórico)[…] o pré-entendimento de que essa produção possui formas e “conceitos estéticos rígidos”, que, uma vez estabelecidos, propagam a falsa acepção do que é e do que não é arte negra.” Diego Pinheiro.

Nos últimos dias, tenho pensado na relação próxima entre o leitor de literatura e o espectador de teatro. Assim como o leitor é criador no processo de leitura, o espectador também o é, ele se insere de maneira criativa e reflexiva não só no texto dramático, mas também na montagem das cenas ao inventar algo “novo” ou atualizar, pela imagem, o que foi e é encenado. Se pensarmos que a relação entre o artista e o espectador na segundaPRETA é tênue e ambígua, uma vez que é forjada na e a partir de uma mesma memória cultural – muitas vezes traumática – e que ambos, artista e espectador, se inventam e se constroem a todo momento como sujeito-artista-espectador preta/o, a fala de uma leitora-artista-espectadora, no momento do debate pós-peça, irrompe e traz à tona uma questão cara quando se pensa a arte contemporânea negra: como encenar de forma diferente os mesmos dramas?

A espectadora argumenta que o público da segundaPRETA, na sua maioria, já passou e/ou passa pelas situações apresentadas em cena, ou seja, são ultrainiciados  no racismo institucionalizado. Logo, como encenar essa ferida aberta de maneira outra, que não usando o discurso, palavra-poder já colocada para construir uma narrativa deslegitimadora da cultura negra? Como surpreender essa espectadora? Como tecer uma dramaturgia do tropeço[1]/fissura/cesura em que a própria ideia de queda/risco/ruptura significa potência criadora, onde se pode refletir sobre as questões raciais e também construir espaços e relações que podem reconfigurar, material e simbolicamente, um território, estabelecendo lugares de enunciação e tecendo outras poéticas?

Leitor, Tudo Preto de Novo!- e perceber no escuro não é uma forma de inércia ou passividade, implica, antes e acima de tudo, uma habilidade particular. Tudo preto de novo para a exposição de uma autoconsciência, para produzir e estar disponível a outras possibilidades subjetivas e estéticas da arte. Com tudo preto, celebramos o fim da segunda temporada da segundaPRETA. Celebramos esse Ensaio Geral que alimentou nossas íris negras e nos convida para o risco.

Foto: Pablo Bernardo

[1] Dramaturgia do Tropeço é um conceito que está criado pelo pesquisador e dramaturgo Anderson Feliciano para falar de uma escrita performática atravessada pelas questões raciais, onde o corpo negro, articulado a uma concepção alternativa de arquivo, gera imagens que possibilita a elaboração de uma outra poética .


Soraya Martins é Doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Teoria da Literatura pela FALE/UFMG. Graduada em Letras – Licenciatura Português e Italiano – UFMG. Formada no Teatro Universitário (TU – UFMG), cursou Semiologia do Teatro no Dipartimento di Musica e Spettecolo dell´Università di Bologna, Itália. Desde 2011, atua no cenário artístico mineiro como atriz e pesquisadora do teatro negro brasileiro. Escreve críticas teatrais para o blog Horizonte da Cena e para o projeto segundaPRETA. Tem seu currículo trabalhos realizados junto a diversas companhias, entre elas, Companhia Candongas e outras firulas, Grupo do Beco, Caixa de Fósforos e, atualmente, trabalha com o Grupo Espanca.