segundaPRETA – bater laje e refazer a cabeça

por Tatiana Carvalho Costa  para o Jornal Letras

Vou batelaje, chegado, no feriado
Se você quiser chegar, é bem chegado
No segundo andar vou morar, juntar os trapos
Prometi pro meu amor aumentar o barraco
Cerveja, carne de gato, farofa, areia no prato
Cimento, um balde de pinga, vamos tirar um retrato
Alho e limão para o santo tirar quebranto
Eu vou morar lá no alto, perto do santo
BATELAJE – samba de Edvaldo Santana


Foto: Pablo Bernardo

Aquilombamento contemporâneo. Pensar-fazer-ser-pensar junto e em retroalimentação, impregnado de afeto emancipatório. Bater laje. Segundas-feiras de recomeços, de reconfigurações, de transcendências e copertencimentos.

Segunda-feira é dia de Exú. A palavra “Exú” significa, em iorubá, “esfera”, aquilo que é infinito, que não tem começo nem fim. Exu é o princípio de tudo, a força da criação, o nascimento, o equilíbrio negativo do Universo, o que não quer dizer coisa ruim. Exú é a célula mater da geração da vida, o que gera o infinito, infinitas vezes. É considerado o primeiro, o primogênito; responsável e grande mestre dos caminhos; o que permite a passagem o inicio de tudo. Exú é a força natural viva que fomenta o crescimento. É o primeiro passo em tudo. É o gerador do que existe, do que existiu e do que ainda vai existir. 

Abrir os caminhos para lidar com a persistente dualidade de ser uma negação e, ao mesmo tempo, ter de permanentemente inventar nossa (r)existência em uma sociedade que cola nos corpos, nas peles, ficções de restritas possibilidades. Abrir os caminhos para se passar de um objeto do discurso nomeado pelas ficções colonizadoras da branquitude a um autorreferencial sujeito do dizer [Aimee Cesaire]. Dizer-fazer-pensar na cena, na plateia e no que faz esse encontro acontecer; no que faz o acontecimento. Ocupar os espaços e o imaginário às segundas-feiras, dia de Exú.

A resistência negra em diversos espaços (não somente físicos), num tornar-se negro coletivo, é um fenômeno de aquilombamento [Beatriz Nascimento]. O quilombo como metáfora aponta para seus possíveis topônimos – favelas, bailes funks, comunidades negras rurais – e para outras conformações que reúnam pessoas negras com o objetivo de reconhecerem, celebrarem e fortalecerem sua negritude. Mas o aquilombar-se e o tornar-se não são fatos dados. Tornar-se é um permanente movimento-rito.

Ori – a cabeça a ser feita (ou desfeita-refeita) – é parte da epistemologia PRETA, um parâmetro de pensar-agir. Ori é chamamento para um rito de passagem, individual e coletivo, ao mesmo tempo autoinduzido e auxiliado por uma irmandade. Pelo quilombo.

Foto: Pablo Bernardo

Ori significa a iniciação a um novo estágio da vida, a uma nova vida, um novo encontro. Ele se estabelece enquanto rito e só por aqueles que sabem fazer com que uma cabeça se articule consigo mesma e se complete com o seu passado, com o seu presente, com o seu futuro, com a sua origem e com o seu momento ali. [Beatriz Nascimento em Ori, documentário de Beatriz Gerber]

A implicação subjetiva desse novo estágio de vida é a percepção de si como PRETA não em relação a uma outridade, de um eu como a outra da cultura, mas de um eu como uma possibilidade de poder. Ori é um evocar das forças que nos colocam na direção ou dentro desse poder. Não é um estado de poder no sentido que a gente entende – poder político, poder de dominação – porque ele não tem essa perspectiva; cada indivíduo é o poder, cada indivíduo é o quilombo [B.N.]. Quilombo como lugar de um poder possível desde dentro e para fora, para construir os pertencimentos e para implodir da noção de outridade da cultura. PRETA é também A cultura.

Não percebendo a população negra representada nos palcos e na plateia do teatro em Belo Horizonte, o que é um reflexo da sociedade, é necessário que nos façamos presente. O questionamento sobre o racismo estrutural, nesta ação, atravessa o campo da criação e reflete na estrutura produtiva da segunda PRETA. Nos reunimos, pretas e pretos artistas e o teatro espanca, para “bater essa laje”. Neste sentido, empretecer um dia da semana com espetáculos de qualidade, significa tocar a raiz da estruturação cultural eurocentrada desta linguagem e promover mudanças significativas na fruição teatral. 

Performar outras possibilidades – práticas – de inserção no imaginário e nos hábitos culturais da cidade, com outros apontamentos sobre o fazer, sobre o pensar, sobre fazer pensar e o pensar sobre o fazer. Oposição ao epistemicídio histórico. A segundaPRETA vem à luz como um projeto disposto a pensar e construir espaços para novos conhecimentos e novas narrativas, falar do lugar da produção de desejos, de conceitos estéticos fluídos, de artes negras no plural, de diálogos tensionados, de retidão crítica. [Soraya Martins, crítica teatral e pesquisadora, em texto publicado no caderno Pensar / Jornal Estado de Minas, 15/12/2017].

Botou laje, já tem como pensamento de sempre fazer uma coisa em cima [Denis,  personagem do documentário Depois Rola o Mocotó, de Débora Herszenhut e Jefferson Oliveira]. Fissurar as possibilidades de espaço e pertencimento onde parece não haver terreno para ampliação. Subverter para (r)existir. Gestão? Bater laje. Mutirão, nos saberes tradicionais, é o trabalho que é feito junto, para um e para todos. Tecnologia de gestão de aquilombamento. Inovação ancestral das formas de produção e sociabilidade PRETA periférica.

A criação do projetomovimento segundaPRETA foi inspirada na Terça Preta, do Bando de Teatro Olodum, de Salvador. Abrir espaço na agenda cultural de Belo Horizonte em um dia atípico – segunda-feira – e no baixo centro da cidade – a rua Aarão Reis – traz também uma provocação para atrair o público da periferia: meia-entrada para pessoas que moram fora dos limites da avenida do Contorno.

O projetomovimento segundaPRETA cria lugar para experimentações em artes cênicas propostas e apresentadas por artistas negras e negros e discutidas por um público diverso, de maioria também negra. Acolhidas pelo teatro Espanca!, as apresentações, debates e reverberações são realizados em ciclos de seis semanas por temporada. Desde janeiro de 2017, já foram cinco ciclos com mais de 40 experimentos cênicos.

Espaço criado também para o diálogo tenso sobre a produção das estéticas negras, virou destino certo de artistas da cidade. Espalhada aos quatro cantos pelos ventos de Iansã, vem reconfigurando material e simbolicamente o espaço comum das artes em Belo Horizonte. [trecho do texto de apresentação do primeiro cadernoPRETO 1]

Adyr Assumpção, Rui Moreira, Gil Amâncio, Ricardo Aleixo, Preto Amparo, Danielle Anatólio, Cia. Espaço Preto, Anderson Feliciano, Demétrio Alves, Andrea Rodrigues, Elisa Nunes, grupo Teatro Negro e Atitude, Evandro Nunes, Sabrina Rauta, Priscila Rezende, Eneida Baraúna, Cia Carolinas, Juhlia Santos, Giovanna Eliodoro, Josi Lopes, Michelle de Sá, Alexandre de Sena, entre outras, interagem no fazer-pensar nas cenas e fora delas. O bando de gente preta descobriu que juntos somos mais fortes e armou seu quilombo [cadernoPRETO]. O saber das matriarcas pretas é reverenciado. Homenagem-chamamento. Ruth de Souza, Zora Santos, Leda Maria Martins, Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo ajustaram o tom de cada uma das cinco temporadas.

Foto: Pablo Bernardo

Levantar a laje. Mutirão. Recompensa compartilhada. Artistas integrantes do projetomovimento se revezam nas funções entre palco, técnica, bilheteria, debate, divulgação, escrita, limpeza do espaço e produção, numa potente prática colaborativa. Não há hierarquia nem centralidade na tomada de decisões. Borderô fechado, bilheteria compartilhada. Também não há, por princípio, a lógica de uma curadoria tradicional para a escolha dos experimentos cênicos. Grupos de Ação são formados para atuarem em diferentes frentes desse bater laje.

Cimento, um balde de pinga, vamos tirar um retrato [E.S.]

Pra promover a visibilidade e a reflexão sobre a arte produzida por e para pessoas PRETAS, a postura da segundaPRETA propõe e anuncia, num desejo de apontar outros caminhos tanto no fazer artístico quanto na criação de uma memória dos processos, do pensamento e do diálogo sobre as obras. Além das apresentações e debates, são realizados registros em diversas mídias, para dar a ver a produção e a reflexão sobre as obras, seus processos e desdobramentos. Até maio de 2018, já foram produzidos três edições do CadernoPRETO, com registros fotográficos, programação por temporada e textos crítico-analíticos, além de um acervo fotográfico e videográfico. O projetomovimento também disponibiliza o material online em site e redes sociais, ativos desde a primeira temporada.  Entre uma temporada e outra, são realizadas atividades de formação – em palestras-conversas, grupos de leitura e residências de dramaturgia – e são criadas pontes com outras artes, como nas exibições do cinemaPRETO.

E a segundaPRETA se desdobra no entorno do espaço-teatro. Na calçada, juntam-se às artes cênicas a gastronomia, a moda e a literatura. A food-kombi Kitutu Gourmet leva a culinária afromineira; Zora Santos apresenta suas criações em acessórios, como os patuás e tecidos com tingidos em métodos ancestrais africanos; a livraria Bantu, especializada em obras sobre negritude e de autores negros, expõe parte do acervo para venda. O estímulo à presença desse círculo de iniciativas comerciais de pessoas negras em BH vai ao encontro dos objetivos de fortalecimento da identidade e sociabilidade negras e abertura de outras possibilidades de ser e de estar na cidade.

O fazer-pensar da segundaPRETA reverbera para outros aquilombamentos. A Segunda Crespa, em São Paulo, e a Segunda Black, no Rio de Janeiro, surgem inspiradas no projetomovimento que, reverenciando nossos antigos, se fortalece em Belo Horizonte.

Espaços de fabulação e outras alegrias. Somos aquelas sementes plantadas por Abdias do Nascimento brotando e gerando estranhos frutos. [cadernoPRETO 1]

Prometi pro meu amor aumentar o barraco
Cerveja, carne de gato, farofa, areia no prato
Cimento, um balde de pinga, vamos tirar um retrato 

Vou batelaje, chegado
[E. S.]