Por Soraya Martins
Uma mirada a partir das cenas: Contava com o céu para tudo, de Dan Costa e Lucas Costa; Pixaim Elétrico, de Michelle Sá e Pat Manoese; e Violento, de Preto Amparo.
22 de outubro de 1986. Oxum com Ogum. Água e fogo. Intuição e medo. Busca e fé em si mesma. Identidade(s) que se constrói na temporalidade e na narração, sempre suscetível à invenção. Leveza. Riso brando. Busca pela(s) identidade(s) no seu caráter fragmentado, múltiplo, relacional e contingente. Dan contava com o céu para tudo, até mesmo para si afirmar. Porque as performances afirmam identidades – incompletas, modelada pela linguagem, cuja dimensão existencial é dialógica, aberta a (construída por) um outro – curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam histórias.
Michele contava com o céu, com seu pixaim e com a exposição radical dela mesma como sujeita-enunciadora. Porque as performances também dizem da encenação de situações de autobiografia, de representação da(s) identidade(s) como um trabalho de constante restauração, sempre inacabado. “As coisas mudam e as resistências se somam”, um golpe de direita, uma cabeçada, cabelos ao vento sem esconder volumes nem negar raízes e nem se negar. Pixaim elétrico, o pôr-de-fora de si mesma, não como uma “outra eu”, mas na honestidade de uma “eu” sem máscaras, que se afirma desafiando padrões, sobretudo sexuais e raciais, fazendo política e buscando a própria biografia como inspiração para compor novos discursos e espaços. Estética do si.
O Pedro contava com o céu, com seu pixaim e a sua “violência” estética. Porque a sua performance passa por gestos e movimentos que vão além de uma representação, o que no seu corpo se repete são experiências e vivências “em contínuo movimento de recriação, remissão e transformação” (Leda Maria Martins). O corpo do Pedro é memória viva e pulsante – gestos, oratura, dança, canto, e ainda, lembranças traumáticas. Na sua tessitura dramática, Pedro Preto em movimento produz imagens que tecem sentidos, nos contam histórias que os textos tendem a camuflar e nos revela experiências que fazem o percurso do pessoal ao coletivo e vice-versa. Esse corpo resguarda, nutre, cria uma performance contestatória.
Três corpos adornados, em performance e que são performance.
O Pedro na sua altivez está em Michele, que com a sua força, está em Dan, que com a sua busca está em todxs nós. Ou pode ser tudo ao contrário também porque a nossa quadrilha emerge da encruzilhada (termo que é também um conceito teórico, como aponta Leda Maria Martins), lugar do contato e contaminações, do encontro e desencontro, da mediação e da mudança. Somos muitos, nos aquilombamos, nos contaminamos de crenças, de valores, de presenças que se entrecruzam, tecendo possibilidades/formas múltiplas para se pensar as várias poéticas negras em cena.
E nessa encruzilhada…
O corpo negro é pensado como conceito semiótico, definido por uma rede de relações, sem delimitar fronteiras discursivas. No movimento do signo negro, em suas variadas posições, é possível acentuar um outro saber também possível, “possível de verdades, possível de legitimidade, possível de encanto e sedução, e como todo saber, passível, porém, de fendas, de rasuras, de incompletudes” (Leda Maria Martins).
E nessa quadrilha…
Dan, libriana, busca a fé em si; Michele, a nervura do real, se radicaliza em si mesma; e Pedro é preto e não comete crimes (tente comer a sua pipoca em paz!) e se tece na dramaturgia do corpo. E eu que não tinha entrado na história me alimento dessas poéticas.
Soraya Martins é mestre em Teoria da Literatura pela FALE/UFMG. Graduada em Letras – Licenciatura Português e Italiano. Atriz cofundadora da Sofisticada Companhia de Teatro, formada no Teatro Universitário, cursou Semiologia do Teatro, com Marcos De Marinis, no DAMS – Dipartimento di Musica e Spettacolo da Università degli Studi di Bologna, Itália. Desde 2011, atua no cenário artístico mineiro como atriz e pesquisadora do teatro afro-brasileiro e tem em seu currículo trabalhos realizados junto a diversas companhias, entre elas Cia Candongas, Grupo do Beco e Caixa de Fósforos.