Por Anderson Feliciano
Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais,
é só fazer outras maiores perguntas.
Riobaldo
Já disse em algum momento que no início a segundaPRETA era apenas um desejo. Era a vontade de criar um espaço onde pudéssemos, além de nos fortalecermos e nos cuidarmos, mostrarmos nossas produções artísticas e gerarmos conhecimentos sobre nós mesmas. Um espaço de fabulação onde fosse possível nos reinventar constantemente. Espaço também criado para refletirmos e expandirmos o diálogo sobre a produção de nossas poéticas e tensionarmos nossas múltiplas formas de sermos/estarmos negras/os no mundo.
Já na sua 6ª temporada, a segundaPRETA firma-se também como lugar de formação. Tem sido no diálogo tenso e muitas vezes frágeis sobre nossas estéticas que verdades cristalizadas tem tido a possibilidade de serem repensadas. Ao nos repensarmos a todo tempo, cavamos novas chances de aprofundarmos na elaboração de outras narrativas. A partir de uma curadoria afectiva, a arte é como pipocas: alimento sanador, usado nos banhos de cura. São elas que aglomeradas secam nossas feridas e fortalece a elaboração de novas subjetividades.
Insistindo no propósito de repensar a segundaPRETA como um espaço de visibilidade, de experimentação e também deslocamentos de imaginários, vemos com entusiasmo a oportunidade de direcionarmos a atenção para o universo infanto-juvenil, na parceria com a Secretaria Municipal de Educação. Quase sempre tratado ao longo da história com pouca atenção, apesar de muitas iniciativas recentes de valorização deste segmento das artes cênicas, o teatro feito para as crianças e jovens anima pelo que pode apresentar de universos imaginados, de ludicidade, de experimentação, enfim, o jogo e a invenção, sem necessariamente está comprometido com intencionalidades pedagógicas.
O Catador de Risos – Foto: Pablo Bernardo
Ao assumirmos o protagonismo das cenas, abrem-se precedentes para problematizarmos lugares como de público e espectador, principalmente em se tratando do público infanto-juvenil. A partir de uma afroperspectiva, desarticulamos essas estruturas e como aponta Leda Maria Martins, fazemos com que “o espectador torna-se um dos signos motores da representação, que reflete e é refletido em um discurso que, simultaneamente, o evoca e é por ele evocado, pois a linguagem cênico-dramática movimenta a experiência e a memória coletiva”. Partindo desta perspectiva de que o espectador é um dos signos motores, que ele reflete e é também refletido, que evoca e é evocado, me parece interessante então refletirmos: Que publico é esse? De que maneira estamos evocando-o? De que maneira estamos formando? O que compreendemos por formação?
Para tentar responder a essas perguntas, trago para um diálogo as três cenas que pude acompanhar como mediador das conversas com o público: Abena, Catador de Risos e Xabisa.
Sempre com casa cheia, o público são meninas e meninos das escolas municipais de Belo Horizontes. São estudantes do ensino fundamental e para muitos deles esse é o primeiro contato com o teatro. A chegada é sempre calorosa, o olhar curioso de alguns é arrebatador. Sempre de uniformes e acompanhados por suas professoras, nunca deixam de fazer perguntas. Não é de meu interesse analisar as obras apresentadas e sim destacar alguns aspectos das mesmas que, a meu ver, corroboram para a sensibilização e ampliação do universo simbólico do público presente.
Abena da Cia. Bando se insere na busca dessa arte poeticamente comprometida. Na investida de um teatro infantil, com foco na contação de histórias, o trabalho de jovens artistas negros da cidade encara o desafio do encontro com público infantil e assume com coragem o risco e a delícia de outras histórias, de possíveis jogos e despertares. Se pudéssemos resumir a história da peça, diríamos que Abena narra a disputa acirrada, num reino imaginário, entre a chuva e o fogo pelo coração da linda princesa negra Abena. Já sabemos, como aponta Leda Martins, que: “a cor de um indivíduo nunca é simplesmente uma cor, mas um enunciado repleto de conotações e interpretações articuladas socialmente, com um valor de verdade que estabelece marcas de poder, definindo lugares, funções e falas.”.
Numa sociedade povoada por princesas loiras e de cabelos lisos, Abena desloca o imaginário de meninas e meninos e estabelece um estranhamento e alargamento do mesmo. Ao conceber uma princesa negra e de cabelos crespos, possibilita a construção social, cultural, política e ideológica de uma expressão criada no seio da comunidade negra: a beleza negra” (Gomes, 2008). Com isso, contribuem para que jovens negras, como apontado por uma delas no dia da apresentação, sintam-se representadas em cena.
Em Xabisa, Michelle Sá em parceria com Alexandre de Sena confronta realidades e tensiona visões de mundos diferentes, problematizando por meio das poéticas de seus corpos o universo simbólico patriarcal e certas ideias de masculinidades, possibilitando aos estudantes fabularem modos outros de estarem no mundo.
Já Rodrigo Santos, com seu palhaço Catador de Risos, desenha sutilmente uma cartografia do riso, dos corpos, dos limites, dos clichês e instaura um jeito delicado de transversalizar com leveza, corpos, gêneros, estilos. Lançando mão da linguagem clownesca que mistura códigos da negrura ele inventa um modo de brincar, sustentando a alegria de um junto, traz para a cena os participantes e desloca esse lugar de artista e publico.
Assim, a segundaPRETA e a sua parceria com a Secretaria de Educação abrem frestas para pensarmos outras possibilidades de sensibilização por e através das artes. Aqui a arte assume seu papel principal na organização do sensível, estabelecendo uma nova ordem, outros discursos e a possibilidade de elaboração de uma afroperspectiva tanto em arte quanto em educação. Cientes de nossas complexidades, devagar devagarinho vamos criando novas configurações de conhecimento e poder, gerando gestos que criam, como aponta Fanon, condições de “existências ideais em um mundo humano” para jovens negras e negros.
Foto: Pablo Bernardo
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, 2a edição.
MARTINS, Leda Maria, 1995. A Cena em Sombras. Editorial Perspectiva. São Paulo, Brasil.