por Anderson Feliciano
Ainda no exercício de uma escrita crítica que almeja articular os trabalhos apresentados na 4ª temporada da segundaPRETA, trago para um diálogo as cenas Mergulho em si de Charlene Bicalho (ES) e Fibra Óptica de Vanessa Nhoa (RJ), mas que diz também ter coração capixaba. Como pontuado no texto anterior o esforço da análise não se pretende ser comparativo, almeja, ao colocá-las juntas, lado a lado, reivindicar a “liberdade como condição primeira e inalienável de toda produção artística” (Menezes, 2016).
Como fio condutor para minha reflexão trago para o centro da análise, como no trabalho apresentando por Charlene, o espelho. Mas não sua face que reflete, interessa-me a outra face.
Foto: Pablo Bernardo
Desde 1944, para não precisarmos irmos tão longe, que Abdias Nascimento e seu icônico Teatro Experimental do Negro têm entre as inúmeras motivações ideológicas o desejo de criar um teatro onde o negro e a negra não sejam apenas tema, mas que possam ser protagonistas de sua própria história.
Tem me chamado muito a atenção nas cenas apresentadas nessa temporada os outros modos de se apresentarem os mesmo dramas e como a política da identidade produz pressupostos sobre onde as pessoas estão, de onde elas partem e para onde podem estar indo. Muitas vezes a sensação que tenho é que o presente parece ser sufocado por um passado colonial que insiste em permanecer e nossos dramas representados já estão normalizados, codificados, institucionalizados. E acredito que é diante dessa encruzilhada que podemos fortalecer um pensamento crítico sobre nossas poéticas.
Como desarticular a ideia inequívoca de uma politica da identidade? Como fazer do corpo lugar de passagem, de passagens?
Não me interessa para nada nesses escritos encontrar uma resposta, insisto apenas num diálogo que, de repente, pode fortalecer pensamentos que possam dar conta de nossa complexa forma de estar negra e negro no mundo.
Comecemos por um Mergulho em si. Adentremos no tempo/espaço ritualístico inventado por Charlene Bicalho e nos posicionemos diante do espelho que ela traz no centro da cena. Como não pensar em Narciso e seu eterno contemplar a si mesmo? Mas aqui o jogo se dá de outra forma. É necessário estarmos alertas para o risco e o contemplar aqui assume outras perspectivas. E surge então o abebê de Oxum. É nele que nos miramos. Por isso me interessa a outra face do espelho e suas possibilidades de fabulação.
E ainda imersos nas memórias, fotografias, jeito de corpo e nos áudios de Charlene, a vemos sentar diante do espelho. Em silêncio cortou vários pedaços de fitas vermelhas e acariciou seus cabelos crespos. Com olhar fixo no espelho cortou uma mecha do cabelo e o amarrou com um pedaço da fita. O que se deu depois foi que várias pessoas do público repetiram seu gesto e de forma sutil criaram uma cartografia de corpos e cabelos e cortes que potencializavam o trabalho. Surgiam então, minhas primeiras inquietações. E se virássemos o espelho? Como fazer do corpo passagem?
Foto: Pablo Bernardo
Mas como em Fibra Óptica não tínhamos tempo pra pensar. As informações nos chegavam com toda velocidade e não conseguíamos processá-las. Mas o corpo negro de Vanessa Nhoa continuava nos interrogando e se iluminava. Com humor ela ria de si mesma ao representar os dramas vividos por mulheres atrizes negras. Enquanto tentávamos pensar, ela numa proposta que privilegiava o corpo-palavra, propunha um tempo outro, onde a velocidade e a aceleração do corpo com os jogos de luzes instauravam um outro espaço. Verborrágica, ela tinha muito a dizer e o que ela apontava é fundamental. Daí foram surgindo outras perguntas: qual a potência política desse discurso? Como sermos aquele corpo que sempre se questiona? Como encontrar em meio ao emaranhado dessas fibras ópticas linhas de fugas?
E Charlene vai nos dando pistas. O cabelo é apenas a ponta do iceberg. E como aponta Nilma Lino Gomes: “cabelo crespo e corpo podem ser considerados expressões e suportes simbólicos da identidade negra no Brasil. Juntos, eles possibilitam a construção social, cultural, política e ideológica de uma expressão criada no seio da comunidade negra: a beleza negra” (Gomes, 2008). E o mergulho em si proposto por ela é, assim como aponta também Fanon, uma “tentativa de retomada de si e de despojamento, é pela tensão permanente de sua liberdade que podemos criar as condições de existências ideais em um mundo humano” (Fanon, 2008).
Para além de suas qualidades propriamente cênicas, as obras apresentadas no dia 02 de abril, em diálogo com as anteriores, abrem interrogantes que podem potencializar muito nossos diálogos. O que nos resta agora é virarmos o espelho e contemplarmos a outra face.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
FLUSSER, Vilém. Do Espelho. Ficções Filosóficas. São Paulo: EDUSP, 1998.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, 2a edição.
MENEZES, Hélio. Arte Negra /Artes de Negros: uma conversa entre forma, tema, autoria e com em Territórios. São Paulo: O Menelick 2° Ato, 2016.
Anderson Feliciano é Mestrando em Dramaturgia e Pós – graduado em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (2009) pela PUC – Minas, além de Performer e Dramaturgo. Desde 2007 vem desenvolvendo projetos focados nas questões raciais e de gênero. É autor dos livros infantis “A Verdadeira História do Saci Pererê” (2009) e “Era Uma Vez em Pasárgada” (2011). Foi vencedor do Primeiro Prêmio de estímulo a novos dramaturgos promovido pelo Clube de Leitura (Belo Horizonte – 2011) com o texto “Pequenas Histórias de trocas de pernas, peles e olhos nos seus arroubos e arredores” e ainda teve o texto “Antes que Aconteça Muita coisa Pode Acontecer” selecionado para uma leitura dramática no concurso promovido pelo projeto Negro Olhar (Rio de Janeiro – 2011). já escreveu textos dramáticos para companhias de Brasil, Chile e Argentina. Como performance há participados de festivais por vários países da América Latina.