Nilma Lino Gomes

Foto: Letícia Souza

“Você não sabe o quanto
eu caminhei
Pra chegar até aqui
Percorri milhas e milhas
antes de dormir
Eu não cochilei
Os mais belos montes
escalei
Nas noites escuras de
frio chorei”
 

Nos disseram que “A estrada” (Cidade Negra) é música que a Nilma mais gosta, que é a música dela.

Filha da D.Glória e de João Jarbas Gomes, irmã de Jarbas, João Carlos e Normélia. Começamos assim esse texto de homenagem por saber que Nilma carrega esses nomes por onde ela passa. Que essa estrada é construída com todas aquelas que compõem a sua história. E quem a conhece sabe da relação linda e de companheirismo que tem com sua mãe, D. Glória. Então, saudamos as diversas histórias que acompanham esta mulher negra que podemos ver de perto sempre. Saudamos a nossa homenageada da oitava temporada da segundaPRETA.

Quando escolhemos a professora Nilma como homenageada, veio para nós a missão de escrever algumas palavras sobre ela. Dias e dias pensando sobre o que dizer, depois de muito refletir e inspiradas pela carta que Júlia Elisa escreveu para Adão Ventura, nos aventuramos em fazer desse texto uma carta. Daquelas que trazem dentro de si notícias de uma vida, lembranças, pequenas anedotas do dia-a-dia, e começam com um cumprimento que diz: espero que essa carta lhe encontre gozando de boa saúde e muito feliz.

Professora Nilma, conheci você pessoalmente quando eu fazia a produção do programa Voz Ativa da Rede Minas e a convidei para compor a bancada de entrevistadores. Fui arrumada, coloquei um turbante e assisti atentamente toda sua participação no programa. Tiramos uma selfie no final. Recentemente a Val Souza escreveu uma coisa que me fez lembrar desse dia. Ela disse “Eu existo porque as mulheres negras me fizeram perceber: eu existo”. Por isso aquele dia de trabalho foi diferente. Naquele dia eu existi um pouco mais. Eu existi um pouco mais por causa de você, sua presença, suas palavras. Assim como existo mais quando me aquilombo aqui na segundaPRETA, lá no quintal da minha iaiá, perto das minhas sobrinhas. Eu existo mais junto das minhas! Eu existo mais junto das mulheres negras.

Em sua banca para professora titular, você nos disse “… eu sou muitas coisas. Mas, primeiramente, professora!”, e é como você consegue olhar e ler o mundo, e compreender que tudo passa pela a nossa educação, que vai muito além da escola. A sua busca por compreender as diversas lutas por emancipação do povo negro, como movimentos de educação e reeducação da sociedade brasileira, fez com que se tornasse referência para as pessoas que se engajam nestas lutas em diversas áreas.

Esse ofício de educar que ultrapassa todas as paredes e muros que são construídos em volta das instituições de ensino é o universo por onde você constrói sua caminhada. Isso me faz lembrar de algumas colocações da pesquisadora bell hooks* em torno do amor. No capítulo Amando a negritude como resistência política do livro Olhares Negros Raça e Representação ela diz “Amar a negritude como resistência política transforma nossas formas de ver e ser, e, portanto, cria as condições necessárias para que nos movamos contra as forças de dominação e morte que tomam as vidas negras”.

Educação e amor são conceitos muito próximos, são ruas da mesma encruzilhada. Quando digo amor, me refiro aquele amor que Baby Suggs em sua pregação nos convoca a exercitar no trecho do livro Amada, de Toni Morrison. Acredito que é por esse esteio que caminham duas obras suas: “O movimento negro educador – Saberes construídos na luta por emancipação” e “Sem perder a raiz – Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra”. Ambas dizem de possibilidades de ampliar o olhar em torno da educação, quando você escreveu sobre o Movimento Negro reafirmou que nosso conhecimento é conhecimento. E ao falar do cabelo dizendo que não é só cabelo, nos convida a ressignificar o entendimento sobre a identidade negra, essa que precisa ser amada.

Lembro de quando eu era criança, e, como quase todas as meninas e mulheres negras, tentava deixar o cabelo mais liso com o chamado relaxamento dos fios. Teve uma vez que eu cortei uma franjinha que era cacheada, mesmo com os produtos para o cabelo, usei ela solta apenas uma vez na escola. Enfim, você já deve imaginar o que me aconteceu. Fiquei com raiva da minha mãe por ela ter me deixado cortar a franja. Eu não entendia. Anos depois, todas fizemos transição capilar, foi um exercício de amor descobrir juntas como tratar o cabelo e a partir dessa descoberta amar, amar cacheado, amar mesmo fazendo uma escova de vez em quando, botar trança, fazer o que for. Amor é liberdade.

Há muitas coisas que só foi possível compreender graças à escuta de outras mulheres negras. Suas obras nos permitem a compreensão de nós mesmas e dessa luta que nos irmana. Hoje, queremos lhe agradecer por tantos motivos. Por Betina, que já li adulta, por cada dia como Ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, como Ministra das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, por ter sido a primeira reitora negra, estando à frente da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB. Dimensionamos o significado disso tudo em um país tão racista.

A gente sabe um pouquinho do quanto você caminhou, sua caminhada é parte de quem somos hoje, nós, segundaPRETA.

Agradecemos a doçura com que nos educa… Agradecemos a coragem por estar em espaços de muitas tensões. Agradecemos por ser presença que nos faz acreditar que é possível construir um mundo melhor. Em uma outra palestra, nos contou que a D. Glória ensinou que você deveria aproveitar os momentos de felicidade, pois eles são poucos e acabam. É isso mesmo! Para nós, ter você aqui é um momento feliz e o desejo é dilatar o tempo, esticar as horas, parar o relógio. Pois somos muito felizes com a sua existência.

 

*  bell hooks no livro Olhares negros: raça e representação; tradução de Stephanie Borges, São Paulo: Editora Elefante, 2019.

 


Alessandra Brito é jornalista graduada pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), mestranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e militante junto à segundaPRETA.

Ana Martins é da ZN-BH, graduada em teatro pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestranda em Educação pela mesma instituição, professora, atriz, co-fundadora da Cia. Espaço Preto, membro da equipe de organização da segundaPRETA.