Por Soraya Martins
Reflexões a partir do espetáculo Àbíkú, do grupo Teatro Negro e Atitude
Foto: Pablo Bernardo
Diz, André, o que que cê pensou? Você que é aquele que nasce para morrer e retornar outras vezes, que vive no espiralar do tempo.
Como atrair o passado e o futuro e recriar-se no presente?
Os teus treze anos é um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. A vida é mistura de todos e de tudo: dos que foram, dos que estão sendo e dos que vão ser. E essa gira, como diz Leda, atualiza os diapasões da memória, tranças aneladas na improvisação que borda os restos, resíduos e vestígios diaspóricos em novas formas expressivas.
No começo do meu processo de Unha Postiça chamei – querendo um diálogo tensionado sobre a minha forma de pensar a arte contemporânea negra – Bell Hooks para assistir o ensaio no Centro de Referência da Juventude. Ela chegou e me disse:
“Ah, é você quem quer falar da subjetividade radical da mulher negra? Prazer.
Assistiu os 18 minutos de cena.
Perguntou: “O que está para além do teu resistir, filha?” Elegantemente, se incluiu no discurso, e continuou: “criamos textos alternativos que não são apenas reação? Com você, André, compartilho, agora, esse primeiro labirinto.
O teu nascimento, no dia 5 de junho, no Espanca!, foi para mim, no momento de ruptura da placenta, macunaístico – “na noite, na encruzilhada, nos labirintos”. Me abri para o jogo. E, assim aberta, fiquei ansiosa para ver escalados, sim, os estereótipos, mas com transformações; as contradições e fissuras que são indícios de uma falha mais essencial que pode emergir outra história; os macunaímas que somos: egoístas, preguiçosos, inteligentes e capazes de questionar e deslocar os que estão à nossa volta. Enfim. O devir da queda e do risco que talha uma espécie de esssencialismo negro, colocando em desequilíbrio o lugar do negro religioso e flagelado.
E me lembrei ainda da Bell Hooks comigo no CRJ.
“Como encenar o olhar da interrogação?”
“Como olhar a contrapelo o nosso modo de fazer arte negra sem o fardo do maniqueísmo?”
“Pense num olhar opositivo, filha!”
Mais labirintos para gente, André!
Sabe? Numa viagem mais viagem, fico viajando numa espécie de revolução haitiana das artes em constante transmutação.
Ressentimento vira jazz.
Aberta para o jogo, resolvi te escrever essa carta, apontando um pouquinho da minha mirada, mas dedilhando as surpresas da rosa. E nesse meu dedilhar, André, sei da sua história – dos que foram, dos que estão sendo, dos que virão a ser – e a respeito. Por isso escrevo. Sei que o teu corpo é o corpo que grita. E teu grito ecoa. É necessário. É terra espessa. Terra grossa. Terra molhada. Pronta para o plantio. Bora fazer revolução juntxs!
Um beijo assim, com sabor de terra molhada.
Foto: Pablo Bernardo
Doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Teoria da Literatura pela FALE/UFMG. Graduada em Letras – Licenciatura Português e Italiano – UFMG. Formada no Teatro Universitário (TU – UFMG), cursou Semiologia do Teatro no Dipartimento di Musica e Spettecolo dell´Università di Bologna, Itália. Desde 2011, atua no cenário artístico mineiro como atriz e pesquisadora do teatro negro brasileiro. Escreve críticas teatrais para o blog Horizonte da Cena e para o projeto segundaPRETA. Tem seu currículo trabalhos realizados junto a diversas companhias, entre elas, Companhia Candongas e outras firulas, Grupo do Beco, Caixa de Fósforos e, atualmente, trabalha com o Grupo Espanca.