Elas nas invenções e nos rasgos das tramas encantatórias

Por Mário Rosa

Elas nas invenções e nos rasgos das tramas encantatórias: algumas palavras sobre Vem… pra ser infeliz, 2017 de Priscila Rezende e Fragmentos do amor no panteão africano de Eneida Baraúna


Foto: Pablo Bernardo

A segundaPRETA e elas. E aqui, neste espaço tão caro de partilha e conversa sobre as artes cênicas e performativas negras, elas e o meu desafio de escrever sobre o que se passou, num elaborar afetivo sobre a experiência de assistir propostas tão diferentes e interessantes na sondagem de questões que perpassam os corpos e as afetividades destas mulheres negras.

Elas e as nossas distâncias, possibilidades de fundamentar eticamente relações, de enriquecer um junto e de favorecer deslocamentos para um pensar que efetivamente procura ver o outro, seus incômodos, seus anseios e seus desejos, o que de modo algum nega o que possa aparecer de tenso, desencontrado e lacunar nessas tentativas de aproximação.

Elas e as suas poéticas que tentam, cada uma à sua maneira, elaborar dores, afirmar posições e encontrar uma linguagem à altura da necessidade e da vontade de criação de mundos. E aí, do muito que chegou, ressoou, percorreu e atritou fica a síntese provisória do elascorpos-tempos-vozes-gestos-imagens nas espirais das fabulações e dos desmontes, das recusas e dos encantamentos, das invenções e dos rasgos das tramas encantatórias.

Estados de corpos e de presenças num jogo sabido, doído e corajoso.


Foto: Pablo Bernardo

Do corpo e do tempo que subverte dolorosamente a imagem primeira-fetiche-identificável, a performance de Priscila Rezende Vem… pra ser infeliz, 2017 utiliza a duração como recurso de questionamento e de desmonte da mulata sambista gostosa exportação.

Seminua, de salto alto, com uma máscara de flandres no rosto, no corpo expressões como mulata globeleza, mula, tanajura, cor de jambo, quente e da cor do pecado coladas em letras coloridas, ela ocupou o espaço central do teatro Espanca! e sambou.

Sambou   sambou     sambou       sambou             sambou                              sambou.

O som de uma bateria de escola de samba seguia num ritmo que por vezes quebrava e insinuava uma interrupção, mas eis que recomeçava e ela lá, numa repetição insistente, em variações simples de movimentos que estamos acostumados a assistir pela TV. Seguimos aquele corpo que dança, observamos os escritos, olhamos para o rosto com a máscara, o salto, o corpo, a dança, certa imponência, o corpo novamente e seu movimento no espaço. Até quando? Sambou, sambou e sambou.

A permanência da dança que exaure Priscila e desconforta as pessoas que assistem abre para algo que é sentido e percebido como incômodo no que se vê: a perda de certa cintilância do “pra ser feliz”, já que a mulata globeleza que ela dança prolongadamente revela a carne que não queremos presenciar, expõe as estratégias de objetificação e silenciamento dos corpos negros femininos, deixa a ver o suor, o cansaço na sustentação difícil da imagem e o dourado que se esvai como as letras das palavras que caem do seu corpo. O que não acaba, o que repete, o que volta em novo compasso, o que permanece na batida da bateria é uma longa duração de um passado que não passa e que a proposta de Priscila ativa e atualiza de modo esgarçante.

Contudo, na ação, aquele corpo não é ruína e não sucumbe, apesar de todo cansaço e da violência que ele explicita. Ele mais parece, e isso reforça muito a proposta, um campo expandido de experimentação. O que pode este corpo? Ele escapole da representação da fragilidade que desaba, pois o que se entrevê ali é um feixe de forças que ultrapassa as formas reconhecidas. Surge daí uma evidência aparentemente óbvia: o corpo é maior. Ele, o corpo presença da Priscila, o corpo da mulher negra Priscila, que ao final da ação se mantém de pé, quase a nos dizer que o que tende a colar da imagem espetáculo não se mantém se exposto num outro regime de temporalidade, aparece carregado de histórias, sensibilidades, contradições e desejos irredutíveis à crítica ou à negação do olhar do outro. Neste sentido, é um corpo que se afirma muito mais, um corpo atravessado por imagens, impostas e construídas, e que carrega nesta dolorosa travessia as possibilidades de um ir além.


Foto: Pablo Bernardo

Em outro movimento do corpo e dos desejos, Fragmentos do amor no panteão africano, de Eneida Baraúna, nos conta histórias de orixás numa perspectiva que mistura elementos de tradições orais africanas, cartografias do amor romântico ocidental e contribuições de um caldo rico da cultura popular brasileira. Desta operação, de forte carga comunicativa, o que se ressalta é a forte presença de Eneida como contadora de histórias.

Do vermelho do vestido, da presença central em cena e a flor próxima ao seu corpo, ela instaura já de início um campo de fabulação em que emergem histórias de Iansã, Ogum, Obá e tantos outros orixás envolvidos em tramas de sedução, desencontros e conflitos amorosos. É ali que ela joga, inventa, desvirtua, encanta, situa, atualiza, modula, carrega e desafia. Tem domínio da tradição, mas procura no livre uso de uma narração particular tornar aquelas histórias próxima de quem assiste.

E é com o domínio do corpo que narra, que inclui as modulações da voz, as temporalidades que ativa, um gestual que cria mundos e a musicalidade que entoa, que Eneida segue numa sequencia de narrativas em equilíbrio delicado entre a evocação da figura dos orixás e as histórias bem populares de enlaces amorosos em tons quase novelescos, que podem causar certo desconforto pela reiteração de certas posições de gêneros nas histórias narradas. Nesse sentido, ficam as perguntas: como pensar o perspectivismo africano como inspiração para histórias que se quer elaborar, mas sem que esse procedimento seja a mera cópia do estudado: tão distantes, idealizado e em muitos aspectos de uma referência também problemática? Como aproximar perspectivas (tradições africanas e os modos culturais da vida contemporânea brasileira) nessa incursão pela longa tradição da cultura oral que se abra para o experimento narrativo de outras configurações de corpos, gestos e desejos?

Eneida Baraúna parece ter consciência dessas questões e propõe o jogo, jogo quase profano, de uma comunicação direta e sedutora. Dona da história ela se equilibra, constrói e faz os insipientes reparos nas narrativas com despojamento, perspicácia e delicadeza nos modos do narrar. E, numa elevação do entusiasmo dela e de quem assiste, esparrama de vermelho o espaço da contação, esquenta a roda, canta a paixão e novela os contraditórios das tramas que ainda seguem muito perto de nós.


Mário Rosa é Historiador, mestre em arte e educação pela FaE-UFMG, dramaturgo e professor.