Das maneiras de percorrer as superfícies e almejar suas profundezas

Por Mário Rosa

SEGUNDA PRETA.

O movimento segue, e com ele artistas e público às voltas com formas, desejos, forças, tramas, expressões, exibições, impasses, riscos e formulações. Nas tentativas de criar e expressar poéticas negras contemporâneas neste espaço da SEGUNDA PRETA, seguimos assistindo propostas que nos instigam a pensar, a indagar sobre escolhas e recusas e a querer conversar sobre as experiências do visto, do sentido e do percebido.

E aproveitando a discussão no debate sobre a crítica aos trabalhos apresentados, gostaria de afirmar a importância do espaço escritos no site da Segunda Preta, por permitir que comentários, miradas críticas e algumas incipientes formulações analíticas fiquem registradas e possibilitem um retorno honesto aos artistas que se apresentaram.  Longe da intenção de dizer gosto ou não gosto das cenas, acredito que o que se tenta aqui é uma leitura das obras a partir do que conseguimos formular na conjugação da percepção e da reflexão, sempre a partir de um repertório de referências particulares.

Com intenções e poéticas diversas, os trabalhos cênicos apresentados no dia 12 de junho tem em comum o feminino enunciado e referenciado em perspectivas variadas e a experimentação que se aproxima ou se afirma no campo expandido da performance. Propostas ousadas que não temem a superfície por saber das suas profundezas e que se arriscam em percorrer os territórios lisos e estriados da criação, questionando ordens (estéticas e políticas) estabelecidas e buscando articulações próprias entre conteúdo e forma.

Foto: Pablo Bernardo 

DÊ AFETO À SUA/SEU PRETA/PRETO EM PRAÇA PÚBLICA (Rolezinho de artistas independentes). Esta proposta, que no programa buscava abordar as tensões que decorrem da visibilidade dos afetos de pretas e pretos em praça pública, ficou nesse dia 12 de junho concentrada na ação Pra você é outros amores, com concepção e encenação de Evandro Nunes. Na rua, próximo ao Espanca!, ele criou um lugar pra tocar à sua maneira no tema do afeto. Ao lado de um poste em que se via multiplicada a pergunta o que é o amor?, ele repetia uma movimentação que incluía sentar numa cadeira, calmamente se maquiar, levantar, cantar uma canção e ficar na disposição do oferecimento de uma rosa a alguém. A repetição, as pausas, as entonações do canto, os silêncios, o inusitado dos encontros e até mesmo a distância entre o burburinho na porta do teatro e as poucas pessoas que acompanhavam a ação, criaram uma estranha sensação que talvez tenha sido a intenção do artista: falar de uma solidão que é a dele, que pode ser a nossa e também questionar por vias indiretas a posição de mendicância amorosa, longe do apego da verdade de ter cumplicidade nas várias formas de ver o amor que ele cantava. Neste sentido, me parece que falar de multiplicidade das formas de ver o amor é também pensar e se esforçar na experimentação das várias formas de amar que se distanciem das referências que nos aprisionam em visões do paraíso. Se entendermos o afeto como a modificação a partir de um fora que nos toca e nos atravessa, talvez possamos pensar que o nosso engajamento estético e político deva caminhar também na descolonização dos posicionamentos amorosos que nos enfraquecem e nos violentam, podendo assim problematizar demandas e alterar cena e vida em praça pública e em outros espaços de convívio.

Foto: Pablo Bernardo

UNHA POSTIÇA (Coletivo Tropeço) – A cena de Soraya Martins segue a pesquisa que o Coletivo Tropeço tem se esforçado no último ano em elaborar a partir do corpo, da fabulação, da memória e de um interesse estético que tem na performance seu campo central. Imagens, movimentos e palavras encontram e se desencontram na força e na despotência desta proposta. A cena começa fortemente com um jogo entre o corpo de Soraya defronte à parede e a sua sombra que me parece muito interessante como possibilidade de se falar de um duplo, de uma dobra, de um confronto com um espelhamento que estranha e identifica: a memória do corpo? o (in)visível das forças? Ela sustenta uma coisa entre a cabeça e parede e este movimento com esta coisa cria uma imagem forte por sugerir num raro momento uma zona de indiscernibilidade entre o corporal, o subjetivo e a coisa (LEPECKI, 2012)[1]. No entanto, a música em italiano que é tocada e que a faz dançar enfraquece aquela primeira investida e chega a frustrar uma expectativa sobre o que poderia apresentar a superfície daquele corpo (e daquela sombra) que dança, pois há um movimento que parece ser de uma afeição e de uma experiência pessoal que não encontra força expressiva. Ela está lá, sua sombra também, mas algo se encerra ali, sem as brechas expostas inicialmente. Até que de seu corpo cai uma laranja que esteve sempre lá (como coisa) com ela que dançava e, novamente, uma clareira se abre pra uma nova fertilidade, pois há outro jeito de corpo e outro movimento de cena que redimensionam o tempo: circularidades e repetições. E a partir daí ela nos apresenta corpo/texto que retoma e retoma e retoma a narrativa de uma linha de fuga, de um pedido de chão, de uma vontade de terra e de um desejo de silêncio.  Neste momento, em que fica mais evidente a proximidade com o trabalho de Anderson Feliciano, também do Coletivo Tropeço, percebemos o desafio destes artistas em buscar performances do corpo e do texto que criem expressividades não restritas ao biográfico e ao fabular. Nesta empreitada, em que os silêncios, o esgarçamento das pausas, a repetição, o jogo com as palavras e a não representação são tão importantes, seria desejável que a oscilante e corajosa ação de Soraya Martins superasse a ansiedade de corpo e da fala ao adentrar e fortalecer esta proposta espiralada de silêncios e imagens.

Foto: Pablo Bernardo

AQUELA MULHER (Zora Santos e Ricardo Aleixo) – Eles e Aquela Mulher: corpo e palavra, corpo-voz, experiência e ficção, memórias e seus volteios fazendo o presente. Num trabalho corajoso e generoso de parceira, vimos Zora Santos entrar no campo criativo de pesquisa intersemiótica de Ricardo Aleixo. Ali ela figura como entidade que se multiplica, se desmonta, atravessa e derrete o tempo cronológico e nos oferece o forte e o frágil de uma vida.  Este experimento cênico é um concentrado de mundo pelo que o texto nos oferta e pelo agenciamento dos elementos utilizados e a presença destes dois artistas que não temem o risco. No rito de evocação de uma entidade aquém, além, dentro e fora, pequena e maior e em constante desassossego no atravessamento do corpo de Zora Santos, nos aproximamos d’aquela

que nunca morre,
que fala com a voz de outra,
que devora a ninhada para livrá-los do pior,
que não existe (ainda bem que não existe),
gigante que faz o que quer porque sabe quem é,
que prefere se perder no mais profundo breu,
que voltará para casa à noite,
nenhuma,
todas,
talvez você,
que (…)

São muitas as que visitam aquele espaço, espaçocorpo, e aí voz, gestualidade que demoli sentidos, palavras que se expandem e encontram insólitas variações e a musicalidade buscada trazem forte carga poética ao trabalho.  Um corpo que se arrisca (entre o receio e a coragem de se jogar), Zora Santos: a vida dela, aquela mulher e o tempo que ela carrega, entre algo “majestoso” e a iminência do desmonte, com o enunciar que multiplica e ficciona o feminino sem se prender à identidade, pois o expressionismo, o mistério não revelado, o artificialismo buscado que rejeita a naturalização do representado, acena pra produção de mundo que é obra da arte e da vida. Ricardo Aleixo tem a presença de um encantador que joga com sons e palavras, ativando o movimento evocativo que prolifera e sintetiza figurações. Deste encontro, que desejamos ver mais integrado e mais intensificado na articulação com os elementos que compõe a cena, fica a forte impressão de uma proposta consistente e radical.

Foto: Pablo Bernardo

PANTERA (Rauta) – Amar é coisa de morrer e de matar… mas tem som de sorriso (Hilda Hilst). A Pantera que Rauta apresenta em cena é um desafio em muitas frentes. Numa vontade de tocar e atacar muitas questões, ela apresenta um trabalho que tensiona e aponta pra uma sugestão de identificação tateante e doída. A solidão de uma fera enjaulada e a cristalização de um ressentimento difícil de quebrar é o que inicialmente mais se destaca em cena, pois o que observamos é um esforço em encontrar o instrumental de luta no corpo e nas ações, mesmo que às vezes vejamos uma coreopolítica de difícil movência pelo desgaste das formas. A atmosfera que ela cria, com a participação de Demétrio Alves em total sintonia com a proposta, confronta as relações raciais, os posicionamentos de gênero e os deliberados esquecimentos do que deve ser sempre lembrado porque ainda estrutura o estado atual das coisas. Com intencional arrogância e entusiasmado anarquismo das formas e dos discursos, ameaça a plateia branca e enternece a plateia preta, nos conta a história de Francisca, eu semelhante ao espelho espatifado, e fricciona fábulas e vidas.  Às vezes tem-se a impressão que Rauta paira sobre a atmosfera incômoda que cria em cena até o deslizar pra instaurações de outros estados de corpos, de provocações e de conversas. Esta impressão talvez seja em parte intencional ou aponte pro que ainda falta de domínio do texto e, neste caso, considerando o debate realizado logo após as apresentações, não está em questão a medida da “sujeira” da cena, mas o quanto a segurança do que é dito fortalece a proposta do experimento. Em algum momento Rauta menciona a conhecida frase de Valery o mais profundo é a pele em sintonia com o apreço às linhas de desejo estimuladas e presentes a cena. Neste sentido, há algo que lateja na pela dela, que pede passagem, que tenta encontrar pela via dos excessos profundidades nas superfícies dos jogos de imagens, algumas vezes muito potentes.  A fera na selva das cidades ao final se concilia entre os seus, afirmando a partir de onde começa a sua luta e o que a alimenta. Numa boa gambiarra energética que funciona onda ela menos espera, o que fica (depois do soco) é a expectativa de que a coragem e o desassossego a acompanhe no refinamento de uma poética que fortaleça e expanda estes campos de confronto e ternura.

[1] LEPECKI, André. 9 variações sobre coisas e performance. Revista Urdimento, nº 19, novembro de 2012.


Mário Rosa é Historiador, mestre em arte e educação pela FaE-UFMG, dramaturgo e professor.