DA AÇOTEIA¹

Por Soraya Martins

Uma mirada a partir da peça Nossa Senhora da Açoteia, de Adyr Assumpção, apresentada no Projeto segunda PRETA que acontece toda segunda, às 20h, no teatro espanca!

Desde pequena gostava de ouvir estórias, desde pequena ficava encantada quando via e ouvia a grande narradora da minha família, minha tia Keila Beatriz, mais conhecida como Marrom, nome “artístico” para os mais íntimos, que faz uma referência à cantora Alcione. Essa minha tia é a mais nova dxs filhxs e é a pessoa que mais sabe ou inventa sobre as memórias da família Oliveira. Pra tudo tem uma estória, tão ficcionalizada e verdadeira que, até quando soa muita invencionice, a gente não duvida e fica lá para escutar.

Contrariando Walter Benjamin, a arte de narrar nunca passou perto de se extinguir no quintal dessa minha tia, entre feijoadas, um samba da Alcione ou Almir Guineto e uma cliente que ela atende no “Salão Moderno” improvisado no seu quintal. A arte de narrar nunca teve em vias de extinção porque a nossa experiência familiar nunca caiu de cotação. Nossas estórias nunca foram um relato puro como uma informação ou relatório. Minha tia Keila mergulha a coisa narrada na sua própria vida para em seguida retirá-la dela, imprimindo assim a sua marca de narradora, uma griot afrobrasileira, e por que não, negritando e colocando tudo no seu lugar, uma verdadeira Alcione Leskov, de Benjamin?

Os gestos da minha tia, assimilados pelo trabalho de manicure-cabeleireira-artesã, sustentam o que é dito. Desse lugar, ela trabalha a sua matéria-prima como narradora, a vida humana. Dali, ao recorrer ao acervo de toda uma vida, ela passa a sua sabedoria para quem tem interesse em conservar o que foi dito. Uma Nossa Senhora da Açoteia, de Adyr Assumpção, que traz à luz da cena uma narrativa de maturação, a partir de uma lenta superposição de camadas finas e translúcidas que, pouco a pouco, de chá em chá, lançando mão da mais épica das faculdades – a memória que, ao mesmo tempo, apropria-se do curso das coisas e resigna-se com o desaparecimento delas, com o poder da morte- reintera que nossa história de luta não pode ser apagada como página de internet e nos faz lembrar (na verdade, nunca esquecemos) da força e sabedoria e perspicácia da mulher: vai de Angela Davis, passando pelas personagens femininas da peça, chegando até na minha tia, na Zora, na Cida, na Grazi, na Rauta, na Eneida e em tantas outras.

Foto: Pablo Bernardo

Evocar o discurso de Angela Davis na Marcha das Mulheres contra Trump mostra a dimensão utilitária (de bom conselho dado de graça!) de Nossa Senhora da Açoteia, como toda narrativa que se preze. A naturalidade da personagem-narradora faz com que os discursos e estórias fiquem gravados na memória do ouvinte/expectador porque o que é narrado emerge também das experiências compartilhadas por vivermos em um mesmo mundo hetero-patriarcal, racista, homofóbico e capitalista. Mas, nós mulheres, viveremos 200 anos, como as hienas e as três gerações de mulheres da açoteia, para praticar um “feminismo inclusivo e interseccional”, de combate à supremacia masculina branca; para lutar pela a gente mesma, pelas outras mulheres e por nossos filhos e filhas que virão. Quanta sabedoria cabe no silêncio estratégico de uma mulher? “Nós representamos forças poderosas de mudança que estão determinadas a impedir as culturas moribundas do racismo e do hetero-patriarcado de levantar-se novamente” (Angela Davis). E nós como mulheres de luta, que evocamos a voz de nossas bisavós nos porões do navio, a voz de nossas avós que ecoou obediência aos brancos donos de tudo e a voz de nossas mães que ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias, nos enxergamos e nos recriamos na e a partir da açoteia. E miramos, bem do alto, narrativas outras e outras perspectivas históricas que não aquelas fornecidas pelos combatentes em nome de uma memória oficial.

Este é só o começo. Comecei com minha tia e termino copiando, ao mesmo tempo, Ella Baker e Angela Davis: “nós que acreditamos na Liberdade não podemos descansar até que ela seja alcançada!”. Viveremos 200 anos!

1 – Açoteia: palavra de origem árabe que, na região do Algarves em Portugal, designa os terraços nos altos das casas que funcionam como mirantes, ou lugar para a secagem de frutos.


Soraya Martins é mestre em Teoria da Literatura pela FALE/UFMG. Graduada em Letras – Licenciatura Português e Italiano. Atriz cofundadora da Sofisticada Companhia de Teatro, formada no Teatro Universitário, cursou Semiologia do Teatro, com Marcos De Marinis, no DAMS – Dipartimento di Musica e Spettacolo da Università degli Studi di Bologna, Itália. Desde 2011, atua no cenário artístico mineiro como atriz e pesquisadora do teatro afro-brasileiro e tem em seu currículo trabalhos realizados junto a diversas companhias, entre elas Cia Candongas, Grupo do Beco e Caixa de Fósforos.