Carolina: aquela mulher todas e nenhuma

por Anderson Feliciano

Início de outono, segunda-feira 26 de março de 2018, os ventos de Iansã e um tanto de folhas sagradas pra nos afastar de todo mal. E outra vez estávamos lá na encruzilhada da segundaPRETA. Era a primeira vez que recebíamos dois trabalhos de fora de Belo Horizonte: Olha o pesado aí, de Lucimélia Romão e Laura Cerqueira (São João Del Rei) e Sobre todos os dias de Tatiana Henrique (Rio de Janeiro), que curados sobre as bênção de Exu, foram inspirados pela obra de Carolina Maria de Jesus. Ela, nossa vedete da favela, e seu Quarto de Despejo se fizeram presentes nas propostas estéticas das duas cenas. Sua voz ecoou e criou um modo de brincar e um tempo ritualístico que abria a possibilidade de desarticulação da maneira redutora que estamos acostumadas a vê-la. Naquela noite ela era todas nós e nenhuma.

Foto: Pablo Bernardo

De acordo com Alzira Perpetua (1), especialista na obra de Carolina, as anotações diárias, da catadora de papel que colecionava livros, vão imprimir um caráter bastante caótico à escrita, transformando o diário numa obra fragmentada, onde vários eus se evidenciam. Argumenta também que a diarista é duas: aquela que viveu e aquela que escreve; e esses dois eus podem desdobrar-se, imediatamente, em muitas outras. E são essas muitas outras Carolinas presentes em seu Quarto de Despejo que serão corporificadas nas cenas apresentadas.

Lucimélia e Laura de forma simples, delicada e bem humorada conseguiram orquestrar as muitas vozes de Carolina em sintonia com as delas. Pareciam ter plena consciência que as escrevivências da Vedete da favela eram caminho e não fim. Valendo-se de um modo de brincar e de uma estética da precariedade, que nesse caso é potência, nos conduziram pelos becos de uma favela como aquelas pintadas por Heitor dos Prazeres. As cantigas entoadas por elas e um jeito de corpo de quem carregava livros na cabeça, e não latas d’água, minava estereótipos e abria-se para a fabulação de outras imagens simbólicas de nós mesmas. Dançando e cantando distribuíam o peso que carregavam na cabeça, livros de escritoras negras, com homens que estavam na plateia. Para além da interpretação simplista que podemos cair de início, me parece mais relevante deixar ecoar pela memória: dá licença que eu vou.

Com elementos recorrentes do universo da negrura como: tambor, barro, bacia com água, feijão servido em copos de alumínio, Tatiana, vestida de branco, em sua performance ritual, “não queria ser Carolina”, desejava que sua voz ecoasse e também fizesse coro com as vozes daquela mulher que fala pela voz de outras (2). Em uma coreopolítica, que muitas vezes caia na representação, ela apontava caminhos que por uma ansiedade do corpo se perdiam. A necessidade de “tenho que fazer tudo” não contribuía com o tempo necessário para que o jogo com a plateia se instaura-se. O tempo em Sobre todos os dias me parecia fundamental e de maneira sutil se potencializou no instante em que a performer distribuiu vários papéis com escritos de e sobre mulheres negras para pessoas do público que orquestradas por ela liam e repetiam, instaurando naquele momento uma sobreposição de vozes e tempos que transformava aquela experiência do “real” numa experiência capaz de esteticamente também afetar.

Foto: Pablo Bernardo

Aqui, neste momento o exercício também não será de comparação, pretende como na semana passada, aproximar as cenas para tentar articular um pensamento que pretende desarticular as estruturas racistas que insistem em nos invisibilizar.

Sabemos, como aponta Benjamim, que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral”.(3) Nesse sentido compreender o contexto, no qual a vereadora Marielle Franco foi assassinada, e articulá-lo as muitas vozes daquela mulher que é todas e nenhuma configura-se num desvio dessa regra geral e possibilita, nem que seja por algumas horas, a fabulação de outros mundos possíveis. Cria-se uma espaço/tempo onde, aquelas que historicamente, sempre foram silenciadas, possam entoar seu canto. Surge dessa forma, não descolada da vida, mas na vida mesma rastros de afectos alegres que nos possibilitam conceber o depois com outras perspectivas.

E que as muitas vozes de Carolina, Marielle, Lucimélia, Laura e Tatiana embaladas pelo canto de Nanã, sejam espalhadas pelo mundo, pelos ventos de Iansã.

(1) Elzira Perpetua
(2) Ricardo Aleixo (versos do poema: Aquela Mulher)
(3) Walter Benjamim


Anderson Feliciano é Mestrando em Dramaturgia e Pós – graduado em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (2009) pela PUC – Minas, além de Performer e Dramaturgo. Desde 2007 vem desenvolvendo projetos focados nas questões raciais e de gênero. É autor dos livros infantis “A Verdadeira História do Saci Pererê” (2009) e “Era Uma Vez em Pasárgada” (2011). Foi vencedor do Primeiro Prêmio de estímulo a novos dramaturgos promovido pelo Clube de Leitura (Belo Horizonte – 2011) com o texto “Pequenas Histórias de trocas de pernas, peles e olhos nos seus arroubos e arredores” e ainda teve o texto “Antes que Aconteça Muita coisa Pode Acontecer” selecionado para uma leitura dramática no concurso promovido pelo projeto Negro Olhar (Rio de Janeiro – 2011). já escreveu textos dramáticos para companhias de Brasil, Chile e Argentina. Como performance há participados de festivais por vários países da América Latina.