Por Soraya Martins
Uma mirada a partir da cena-experimento Mãe da Rua, da Cia Espaço Preto, e a discussão que se seguiu.
A maioria das pessoas gostaria de voltar no tempo por considerar o antigamente mais bonito, digno de ser revivido, ou porque voltar no tempo significa também o retorno à juventude. Nunca quis voltar a minha infância ou adolescência. Adoro o meu presente e as fabulações que faço para o meu futuro. Lembrar do meu antigamente-mente é lembrar de pera, uva, maçã, salada mista em que nunca fui coroada com um beijo no final. Mas ontem fiquei com saudade do que vivi e do que eu era. Quis (re)brincar com minha infância e ladrilhar com pedrinhas, com pedrinhas bem pretinhas um espaço pra eu sempre ficar. Pois é também brincando que a gente conquista até mesmo novas poéticas. Cantando cantigas de criança, a gente grafa a palavra na performance do corpo e essa palavra, em movimento espiralar, passa de boca em boca, criando um Espaço Preto de pressão e potência.
Quem nunca brincou de aviãozinho? Toda brincadeira tem um fundo de verdade, e a poética construída por Mãe da Rua para nos contar essas verdades sociorraciais passa por uma rede complexa de diferentes tipos de signos, meios de expressão e ações, tecendo um universo pleno de fusões, superposições, ambiguidades e desvios. Brincar de aviãozinho ou de foguinho, colocando a mão no chão ao som de uma sirene, aponta, ali, para uma função dialógica, de dupla fala, revelando formações discursivas de dupla referência, que estabelecem, em vários níveis, um diálogo intercultural entre periferia e centro, entre várias formas de expressão.
Uma brincadeira. Responde rápido. Qual a sua relação com a polícia? Pum-pum-pum não deu tempo!
No interstício do espaço criado em cena – a rua – é tecida uma estrutura dupla, de aparências e dissimulações e ilusões, que consiste num modo de relacionamento com o real como indicação de uma outra perspectiva da experiência e da análise cultural. A mãe da rua assume sua própria fala e conta a história de seu ponto de vista.
De qual brincadeira na infância eu mais gostava? De criar brincadeiras novas. Conhece a brincadeira da cadeia alimentar? Que posição você ocupa? Quem produz e quem consome?
Outra brincadeira. Responde. Por que o indivíduo branco não se racializa e se coloca geralmente como universal?
“O código da duplicidade instaura o jogo da aparência e da representação, que é também o jogo do olhar, da ironia, da sedução, o jogo dos sentidos na tradução da diferença, em que não se cristalizam verdades absolutas, mas, sim, práticas de fala, jogos discursivos, espaço de linguagem” (Leda Maria Martins). Brincar de mãe da rua impõe uma singularidade como um traço positivo de reconhecimento, reapropriando-se de uma experiência pessoal que erige sujeito(s) falante(s) e não apenas dito. Reatualiza as várias formas de sermos diaspóricos.
Vai. Última brincadeira. Séria. Para tentar responder com calma e paciência de Jó. Como é possível descolonizar nosso próprio pensamento e construir novos conhecimentos e novas formas de nos articularmos? “Os debates propostos por nós tem ampliado territórios e ampliado a denominada poética negra? Temos debatido sistematicamente nossos procedimentos estéticos?” (Anderson Feliciano)
Não disse que seria fácil.
Mas.
Essa rua, essa rua já é nossa e, por isso, temos que mandar ladrilhar com pedrinhas, com pedrinhas bem brilhantes, só pra gente, só pra gente (e quem mais quiser) passar e ficar.
Soraya Martins é mestre em Teoria da Literatura pela FALE/UFMG. Graduada em Letras – Licenciatura Português e Italiano. Atriz cofundadora da Sofisticada Companhia de Teatro, formada no Teatro Universitário, cursou Semiologia do Teatro, com Marcos De Marinis, no DAMS – Dipartimento di Musica e Spettacolo da Università degli Studi di Bologna, Itália. Desde 2011, atua no cenário artístico mineiro como atriz e pesquisadora do teatro afro-brasileiro e tem em seu currículo trabalhos realizados junto a diversas companhias, entre elas Cia Candongas, Grupo do Beco e Caixa de Fósforos.