“Achei que era festa, mas era teatro”* ou Tentativas

Por Ana Martins

Reflexões e expansões a partir espetáculo Xabisa de Michelle Sá e Alexandre de Sena.

Foto: Pablo Bernardo

segundaPRETA é segunda, mas também pode ser domingo. Domingo de Feira Hippie, de Duelo de MC’s e também de segundaPRETINHA. Que foi dia de Xabisa.

segundaPRETINHA naquele dia me possibilitou algumas tentativas de caminhada para outra forma de teatro para crianças que, como a segundaPRETA, coloque a rua em questão, a rua como parte de conhecimento em diálogo, para que os caminhos sejam abertos.

Ao entrar, o público vê um ator e uma atriz dançando e se aquecendo para iniciar.

Início. Escuta. Fala. Desencontro. Urgência de contar algo sobre si. Contar como se deu a construção do que sou eu, menino/menina.

Duas tentativas de contar uma história em palavras, verbalmente, em português, que se confunde, se interrompem e não se escutam. Se desencontram. Tentativas do ator Alexandre de Sena e da atriz Michele Sá em falar. Tentam falar de como era a infância, das brincadeiras de meninos e de meninas…

A urgência de quem nunca pode falar é posta, as falas que não ouvimos de nossas meninas e meninos negros/as. Como você se fez menino? Como você se fez menina? Nas falas a tentativa de contar a falta de escuta de como se deram nossos corpos, vozes, tentativas de acerto, erro e Ser.

“Vamos tentar contar isso como palhaços?”  Foi a minha tentativa de entender o que quase pude escutar no silêncio dos atores ao colocarem seus narizes de palhaço… preto! Destes Palhaços Pretos, não aqueles palhaços… Não aqueles que mostram o que é de ridículo para acharem o caminho de seu personagem. Dos Palhaços de cá, cujo os corpos e jeito sempre foi posto como ridículo. E ali não havia nada de ridículo. O que estava posto era jogo, o jogo de um ator e uma atriz, nos mostrando Estes Outros Palhaços.

E começa a tentativa de contar uma jornada de palhaços, carregando seus pesos, suas “mochilas feitas de pantomima” e carregadas nos ombros cheios memórias   e ainda com desejo de chegada a algum lugar e com desejo de encontrar riqueza. Mas qual? A partir do momento que o nariz preto (!) é posto não se fala mais português, não há confusões. Como se aquele nariz preto (!) nos mostrasse outra forma de comunicar, de contar uma história, como se ele nos transportasse para um outro tempo. É isso que o teatro faz, te leva para uma outra história. É como se fosse a sua música preferida, aquela que vem carregada de memórias, que te faz no meio da festa ser transportada para outro tempo. Outro tempo que também é o aqui e o agora. Mas esse “nariz preto” nos leva a uma jornada de resgate da história do povo preto. Neste momento também se fala outra língua, uma língua inventada, mas que o público entende por também estar na jornada. Ou não entende e faz como uma criança na plateia que repete o que foi dito pela atriz e exclama: “ eu não entendo a língua que vocês falam”, mas acompanhava o que acontecia ali, demonstrando que a comunicação vai para além do português. Ela estava naqueles corpos que estavam disponíveis, escalando montanha, passando por abismos e trabalhando em mina. Os corpos da atriz e do ator foram colocados em evidência, nenhuma parte do corpo foi negada nesta trajetória, pois o teatro que a maioria de nós artistas negros vivenciamos é um teatro que nega o nosso corpo, a nossa forma de ser e estar no mundo ou nos obriga a estar sempre nos mesmos lugares.

Porque não evidenciar os corpos que já estão ali, porque não falar de algo que também nos foi negado?

(…)

Há dois caminhos, duas jornadas. São caminhos solitários até a uma mina… mina de ouro? Diamantes? Mina de descobertas de rastros deixados por nós e para que nos encontremos?

As batidas nas paredes da mina feitas com as palmas da mão dos palhaços, que  convidam o público a escavar aquela histórias juntos através dos sons produzidos e até achar alguma riqueza. Mas qual?

Ao escavarem essa mina não percebem a presença um do outro até que se descobrem ali, no mesmo lugar, na mesma situação, no mesmo barco. A partir desse momento há uma descoberta do outro: o  Palhaço (Alexandre) vê que a palhaça (Michelle) tem cabelo no “sovaco” e acha engraçado. Ao perceber o estranhamento do outro, coloca mais em evidência isso, que para nós mulheres, é tido como ruim, nojento e etc. O palhaço quer ver e tocar os cabelos debaixo do “sovaco” dela  e acaba esbarrando no peito dela que responde segurando-os. Ele acha engraçado e olha para o seu corpo como se se perguntasse “por que eu não tenho? Ela tem cabelo no sovaco e eu não tenho peito?.” Mas espera! Não é teatro para criança?

O corpo em evidência ali também coloca que as nossas formas de estarmos no mundo pode ser construído socialmente. Como nos fizemos meninas? Como nos fizemos meninos? Jogar com essas construções sociais dos corpos também pode estar em teatro para criança.

Corpo é festa, descoberta e teatro.

Ao final da peça uma nova conversa em português. Dessa vez começam a conversar ao mesmo tempo coisas diferentes, que se completam, mas já se entende, já se encontram. Até dizerem a mesma coisa em tempos diferentes e depois ao mesmo tempo. Fazem memória de Outros Palhaços/as Negros/as e dizem da necessidade de contarmos a nossa história, da necessidade de ter e saber dos vários lados de uma história. Parecem conversar com pessoas queridas, partilhando sonhos e memórias. Um texto cheio de complexidade e apontamentos de um outro mundo possível, que por algum momento me questionei o quanto as crianças conseguem acompanhar essa parte. Mas logo vem a minha cabeça: não subestime as crianças.

E aí, acabou!

“Uai, o teatro acaba assim? E a riqueza?”

O resgate da nossa história está para além da mina, está no resgate das pessoas que gostamos e em quem veio antes de nós. Se no começo era as tentativas de ser, agora deixam de ser tentativas pois buscamos fazer caminhos com os nossos rastros deixados. Fazendo o nosso teatro, o nosso teatro para crianças. O nosso teatro que é festa, é corpo, é história. Pois estamos com os nossos. Acredito que encontrei a riqueza que estes Palhaços, em Xabisa, procuravam.

*Fala de uma jovem negra do Programa Pro-Jovem depois que assistiu o espetáculo

Foto: Pablo Bernardo

Ana Martins gosta de funk e de dar rolê pela cidade. É da ZN, atriz, arte-educadora, graduada em teatro pela UFMG, mestranda em educação e do Programa de Ações Afirmativas-Faculdade de Educação-UFMG.