Por Mário Rosa
Segunda preta, 29 de maio de 2017. Antônio, Fragmentos Maquinicos e Refém Solar. Trabalhos que, cada um a sua maneira, ressaltam o corpo como lugar de experiência, de atravessamentos e de certo desmonte das representações. Imagens e discursos estruturam as cenas. Estabelecem alvos certeiros de ataque e ressonância, mas, vez ou outra, parece que algo escapa ao cálculo, ao desejo de comunicação e protesto, assinalando outras passagens pra fluxos que surpreendem, e aí me parece estar a grande força destes trabalhos. Tudo por um triz: nos excessos, nos riscos, na ingenuidade, na reiteração do já muito falado e, ainda assim, voos e alguns passos. A noite de apresentação foi interessante por apresentar corajosas iniciativas de jovens negros estudantes do teatro e da dança desta Belo Horizonte que reafirmam um dizer de si, com suas experiências cotidianas e memórias familiares, e conduzem as cenas em linhas que situam uma vontade do domínio da forma colada ao sentido desejado de abordagem de um conteúdo específico. Parecem também dizer que as histórias e questões problemáticas dizem respeito a uma vida individual e isso é necessário problematizar artisticamente como possibilidade de superação. A identidade aparece como referência, o que não impede que se entrevejam limitações de mundo em certos contornos e principalmente a necessidade de se pensar em gestos que atualizem, reelaborem e desmontem sujeições e domínios autoritários sobre a vida, tarefa que exige coragem, criatividade, certa solidão e a abertura pra uma partilha do sensível que abriguem outros jeitos de estar juntos nos afetos e nas lutas.
Foto: Pablo Bernardo
A dança de Antônio é a de André Souza, que dança seu corpo negro de presença e memória. Na centralidade do espaço, tudo se volta para ele. Sua dança possível, reconhecível, intencionalmente precária na exigência de uma narrativa, expõe conforto e dor. Os movimentos narram mas o corpo parece dizer algo mais, que pede passagem com algo de incorpóreo que se insinua no intolerável do sufocamento. O que fortalece o trabalho parece ser a expectativa de que na próxima volta do parafuso as estranhezas rompam a repetição conservadora. Nesse sentido, o informe que vaza nas repetições que diferenciam um estado de corpo suplanta a representação. O som que vem da rua envolve a dança silenciosa e parece coletivizar aquele drama (é dele, poderia ser nosso e estamos aqui: JUNTOS). Repetir e diferenciar no corpo e no movimento é, acima de tudo, ação que enfrenta e experimenta com as armas que se tem o desamparo e vasculha o diagrama de forças que nos torna fracos e servis. O que altera a repetição de André/Antônio? É possível realizar isso sozinho? Se a força da dança é o incorporal que está muito além da biografia, pois envolve as conexões das presenças ao criar e apresentar e as vazões que surpreendem criador e público, fica a expectativa de sua proliferação na dança deste artista pra instauração de novos gestos de rupturas que ampliem o repertório de possibilidades poéticas e políticas no campo da arte negra.
Foto: Pablo Bernardo
Em Fragmentos Maquinicos, do Coletivo Maquinária, o texto de Heiner Muller (Hamlet Máquina) serve de impulso pra que os atores discursivamente “estilhacem” uma variedade de temas sociais e políticos do Brasil contemporâneo. A pauta é ampla e tensa: o racismo, o machismo, o patriarcalismo, a homofobia, o consumismo, a manipulação dos veículos de comunicação e muito mais. O que precisa morrer e há coisas demais que já não existem são frases que não são ditas em cena, mas parecem perpassar o trabalho ruidoso de Jéssica Garcêz e Hernandis Moura em cena. Eles se engajam na proposta de Muller em expor a crise da cultura ocidental, da individualidade moderna (em que Hamlet é personagem emblemático), das torções na tradição literária e dramática e dos processos de alienação e anestiamento social: homens máquinas. Perfomatizam a fragmentação do mundo hoje e os desmontes operados pelo autor no século passado. Caminham sobre os destroços que se acumulam a dizer os discursos já muitas vezes reiterados que, se encontra alguma ressonância pela identificação, não vai também muito além disso. Nesse sentido, cabe destacar um fragmento do texto de Vilém Flusser, onde o autor procura, já no século passado, analisar o descompasso entre a fluidez das vivências e a fixação de certos conceitos:
(…) vivemos em um plano, e pensamos em outro. Os nossos conceitos, (em grande parte herança do século passado), não conseguem captar a nossa vivência, e nossa vivência (em grande parte sem paralelo na história), não consegue articular-se. Este divórcio entre pensamento e vida abre dois horizontes igualmente perniciosos: o do antiintelectualismo imediatista, (exemplificado pelo hippie), e o do intelectualismo estéril, (exemplificado nos os vários formalismos e as várias ortodoxias). O desafio se dá no referente ao reformular de conceitos, em abandonar uns e criar outros [1].
A cena nos instiga, portanto, a pensar sobre o que conseguimos construir sobre as camadas sobrepostas de ruínas que ela expõe e sobre os modos de resistência que somos capazes de criar: a referência à maquina no título poderia ser também um maquínico como produção de outros gestos que se atualizam em outras tradições que fortaleçam ainda mais os corpos entusiasmados e desejosos de fala destes criadores.
Foto: Pablo Bernardo
Refém Solar, de Elisa Nunes. Tem muito azul em torno dela. Ali o corpo é imagem, múltiplas, novamente entre o identificável e o seu desmonte. A pele negra coberta de glitter tem uma referência explícita e é por aí que ela vai pra falar do incômodo, do desejo, do que não se sustenta. Dança atravessando as imagens publicitárias, erotizadas, dos imaginários coloniais e performa discursos feministas. Fragmentos de sons e as muitas vozes ouvidas ecoam e entram pelas frestas daquele corpo que parece rachar ou se abrir. Estas vozes falam de identidades, da herança escravocrata, da violência de gênero, de localizações do feminino. O corpo desfigura com a pele/glitter que cai. O movimento desfigura a ordenação de certa imagem cintilante e espetacular. Ela se arrasta, performa mulheres (“acadêmica ou…”), cintila outros tantos desejos e despenca. Deixa vazar o desconforto e evidente o alvo de ataque, e encerra a cena com uma voz que afirma “a identidade na cara da sociedade”. A força das vazões me leva a pensar sobre a continuidade da pesquisa de Elisa Nunes na dança, em especial o que pode este corpo no movimento afirmativo depois que imagens, inclusive as identitárias, perdem sua falsa dimensão do absoluto.
Foto: Pablo Bernardo
Enfim, mais uma vez e espero que por muitas edições, a Segunda Preta nos possibilita pensar sobre as formas de se fazer arte, arte negra em Belo Horizonte. Sabedores da longa tradição de criação e teorização realizadas por artistas e estudiosos negros na cidade, é importante que percebamos nossos impasses, nossos limites e nossas possibilidades criativas no campo social e artístico. E que avancemos, sempre! Evidentemente não basta se considerar negro e estar em cena para fazer arte negra, pois há um investimento da forma sempre a nos exigir estar a altura do nosso tempo e das suas espiraladas: que visitam a tradição, os projetos que um dia foram experimentações, as abertura possíveis e as que ainda estão para serem inventadas poeticamente nesta encruzilhada do presente.
Para finalizar, gostaria de agradecer à Cida Reis pelas conversas no intervalo entre as cenas, que alimentaram a elaboração deste texto, principalmente no tocante ao pensamento de que outras formas, mais afirmativas, de construções estéticas são necessárias quando se fala de arte negra e que há um movimento do desejo e da ação com/na arte negra que pode se fortalecer se as obras não ficarem apenas centradas aos dramas individuais. Vamos lá!
[1] FLUSSER, Vilém. Do futuro. Texto publicado originalmente em “O Estado de São Paulo”, Suplemento literário 01/02/69.
Mário Rosa é Historiador, mestre em arte e educação pela FaE-UFMG, dramaturgo e professor.