Oxossi é caçador: a fissura como estética

Por Soraya Martins

Uma mirada a partir das performances Linha de Frente e Apologia III, de Anderson Feliciano, apresentadas na segunda temporada da segundaPRETA, realizada no teatro espanca!

Fragmento I:

Em termos espaciais e militares, a vanguarda é a primeira linha de um exército, de uma esquadra, em ordem de marcha ou de batalha. O conceito de vanguarda é inconcebível sem o seu oposto. A retaguarda é a parte que protege e consolida o movimento da tropa em questão. Os melhores militares com frequência são colocados lá.

Na nossa guerra diária, não há dúvidas sobre os corpos que são colocados na linha de frente, sobre quais corpos são disparados os canhões.

Há quem prefira disparar canhões.

Há quem prefira apoderar-se deles, desmontá-los peça a peça, refazê-los e extrair deles a parte que nos agride.

Há quem prefira inventar novas histórias.

Na avant-garde de Linha de Frente: O corpo da presença, no equilíbrio precário da ponta dos pés. A possibilidade da queda. A queda como potência criadora.

Ainda na avant-garde: O corpo como discurso, tecendo uma coreopolítica que nos obriga a refletir e estar disponível para outras possibilidades subjetivas e estéticas em arte.

Na coreopolítica: Ponta dos pés, tronco deslocado, pescoço alongado.

O que o significante “corpo” evoca como significado?

É um corpo enforcado? E como o corpo vivo encontra esse lugar com força?

Para além da resistência, que só ela já não basta, o que se anuncia?

“Adentrar a zona da arte contemporânea negra é submergir numa performance que, em exposição da sua autoconsciência, busca mudar padrões coloniais do ser, do saber e do poder em ato estético-performativo” (Diego Pinheiro).

Não se pode liquidar o próprio corpo negro com a arma do outro. Mina-se a arma do outro com todos os elementos possíveis nessa performance. Inventa-se outro texto.

Foto: Pablo Bernardo

Fragmento II

“Só pode ser salvo o que foi arrancado à totalidade triunfante do discurso e da ordem estabelecida” (Jeanne Marie). Nesse sentido, em Apologia III – performance (des)costurada em sete pequenos fragmentos – a fragmentação, a ruptura, o tropeço podem cessar a repetência do previsível e algo outro pode advir.

Sete pequenos fragmentos tecidos a partir da memória – gestos, oralituras, fotos e, ainda, lembranças traumáticas. Lembra-se do passado, não como uma simples enunciação oca, mas como uma tentativa, sempre retomada, de uma fidelidade a aquilo que nele (passado) pedia outro devir.

Foto de quando era criança.

Foto do pai aos 38 anos.

Dizem que pai e filho se parecem.

O escuro. Memória traumática? Esquecimento? O que significa perceber no escuro? É uma forma de inércia ou de passividade?

Não se comprava peras.

Antes: pera, peroba.

Agora: come-se a pera.

Aqui, a ruptura/fragmentação é proposta estética. A ruptura como forma que volta incessantemente ao passado, estabelecendo fissuras e cesuras com o continum da história. E dessa fragmentação e volta ao passado, é possível permitir uma outra história vir à tona. Como diz Jeanne Marie, “as fraturas numa narração são indícios de uma falha essencial que pode emergir outra verdade”.

Em Apologia III, o verdadeiro objeto da lembrança e da rememoração não é, simplesmente, a particularidade de um acontecimento, mas aquilo que nele é criação específica, emergência do novo – um lembrar criador e transformador. Espiralar: “atualiza os diapasões da memória, lembranças resvalada de esquecimento, tranças aneladas na improvisação que borda os restos, resíduos e vestígios” (Leda Maria Martins). Emergência do novo de onde se pode refletir sobre as questões raciais e de gênero, sobre as desigualdades sociais e também construir espaços e relações que podem reconfigurar, material e simbolicamente, um território comum. “Uma iniciativa espistêmica da produção do desejo.”

Foto: Pablo Bernardo

Fragmento III

Como fazer arte negra contemporânea na era do genocídio (houve era em que não existiu?)?

Não se superam os conflitos entre opostos. As teses e antíteses não se fecham, por isso, as questões sempre voltam. Uma presença obsidiante.

Silêncio. Repetição. Fragmentação. Tempo expandido. Como esses elementos se expressam esteticamente? Pensar no como/na forma em que Linha de Frente e Apologia III se tecem, é pensar em uma espécie de melancolia da forma, com total consciência do passado que não passou, de uma ferida aberta social transformada em potência criadora. É pensar na arte e na forma como lugar em que essa melancolia se tensiona.

Linha de Frente e Apologia III interiorizam os conflitos e impasses socioculturais e os (re)elaboram como experiência estética. As duas performances provocam choques, perturbações, deslocam o foco do olhar. A estratégia de voltar-se para o silêncio, a repetição e a fragmentação permite manter a tensão, historicamente crucial, que pauta as relações entre indivíduo e história. E esses elementos, junto com o corpo performativo/pulsante, que fala do lugar do vivido, reconfigura traumas e aponta, na potência do negativo, para a impossibilidade de uma linguagem plena e de sentido totalizante.


Doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Teoria da Literatura pela FALE/UFMG. Graduada em Letras – Licenciatura Português e Italiano – UFMG. Formada no Teatro Universitário (TU – UFMG), cursou Semiologia do Teatro no Dipartimento di Musica e Spettecolo dell´Università di Bologna, Itália. Desde 2011, atua no cenário artístico mineiro como atriz e pesquisadora do teatro negro brasileiro. Escreve críticas teatrais para o blog Horizonte da Cena e para o projeto segundaPRETA. Tem seu currículo trabalhos realizados junto a diversas companhias, entre elas, Companhia Candongas e outras firulas, Grupo do Beco, Caixa de Fósforos e, atualmente, trabalha com o Grupo Espanca.