Por Marcos Alexandre – Faculdade de Letras – UFMG/CNPq
É como se o mundo não saísse do lugar. Estamos em 2017 e ainda nos espantamos com a triste notícia de uso de blackface no teatro. A polêmica se deu com o espetáculo “Trem de Minas” dos irmãos Leonildo Miranda Araújo e Leosino, atores e produtores do espetáculo, apresentado na 43ª Campanha de Popularização de Teatro e da Dança. O fato foi trazido à baila por meio do blog do jornalista Miguel Arcanjo¹, sendo também discutido pela jornalista de O Tempo, Joice Athiê². O que nos espanta é o fato de continuarmos lendo como resposta comentários que dizem realizar “uma homenagem à diversidade” ou “uma homenagem à raça negra”, ainda mais depois de todo debate realizado em 2015, pelo Itaú Cultural, depois da polêmica surgida com o espetáculo “A mulher do trem”, do coletivo Os Fofos Encenam³.
Diante desta premissa, nos vem a pergunta: Será que as pessoas do meio artístico não se interam das notícias ou as negligenciam? Nos dias atuais, já não dá para aceitar o uso de blackface no teatro contemporâneo sob nenhuma circunstância e/ou prerrogativa. Não posso questionar o trabalho citado pelo fato de não tê-lo visto, mas posso argumentar que é difícil ver os sujeitos negros sendo retratados em cena a partir de estereótipos que não os tratam a partir de seus lugares de enunciação e de fala e tenho as minhas dúvidas se xs negrxs, realmente, se veem de alguma maneira homenageados em propostas espetaculares que apenas reforçam tais estereótipos que aparecem desde o figurino, até as partituras físicas que buscam imitar trejeitos que alguns artistas julgam que nos “representam”. O diretor da companhia Os Fofos Encenam, Fernando Neves, em debate, teve a decência de pedir desculpas àqueles que se sentiram ofendidos por usar a técnica que remete ao blackface em seu espetáculo. Seria importante que as pessoas entendessem de uma vez por todas que este não é o caminho adequado para se referir às corporeidades negras.
Revisando e revisitando este lugar e, por sua vez, dando voz e propriedade aos discursos afrocentrados é que surge A segunda Preta como uma excelente iniciativa para valorizar a cultura afro-brasileira, dando vazão aos afetos, corporeidades, identidades, inquietações e subjetividades negras. Entre a variedade de trabalhos apresentados na primeira edição do projeto, ratificando que o teatro negro cobre uma vasta gama de propostas estéticas, trago o espetáculo In Sã: O universo do Rosário em Nós para uma breve discussão. O trabalho conta com atuação de Evandro Nunes, dramaturgia de Anderson Feliciano, concepção espetacular assinada por Anderson Feliciano e Evandro Nunes, cenário idealizado por Marcel Diogo e figurino de Zora Santos.
Ouço… Por isso sigo o caminho da luz que me guia.
Por caminhos distintos, de encontro ao divino, que me receberá.
Então reconstruo o mundo num instante medido
Eu quero ser o mar…
Ouço… Por isso ajunto tudo.
Guardo os inguardáveis
Separo o sal da serragem
Listo nomes, datas e quantidades.
Preciso estar pronto
Em breve ele virá.
Em um ritmo de repetição, em princípio palavras jogadas ao vento, como num suposto estado letargia a partir do qual um homem negro, um corpo negro, vai tomando consciência de si, de seu corpo, e de cada palavra enunciada, que é dividida com o seu espectador. Um gesto de bater na cabeça é reiterado. Representação “clássica” da insanidade, mas, sobretudo, uma ação corporal para que este sujeito possa começar a tecer os seus discursos como se tudo fosse um jorro de anseios, de afetos e de expectativas. O desejo de ser mar, que nunca é, mas sempre é e está em busca de ser; o homem que constantemente está em busca de algo e que “enxerga o mundo por dentro”. O que é enxergar o mundo por dentro?
Para a personagem ressignificada nos gestos e nuances corporais de Evandro Nunes, este homem representa vários corpos e vários tipos de corporeidades que estão em estado de busca e que procuram se tocar, amar, sentir… e sentem dor, alegria, ódio, medo… almejam viver e se encontram com as representações cotidianas de vida e morte… Vários simulacros da figura emblemática de Arthur Bispo do Rosário (Japaratuba, Sergipe, 1909 [1911?] – Rio de Janeiro, 1989), gênio para uma grande parcela de intelectuais, “louco” por outros, incompreendido por muitos, vêm à tona. Uma fonte inesgotável de memórias rasuradas e de discursos que buscam ser reconhecidos no Outro: “Todos ocuparam esse mesmo lugar que estou. Tem memória essa parede? E esse corpo? Memória do futuro? Me sinto mergulhado nesse instante. Instante esse que insiste em perdurar.” (Feliciano, 2017)
O corpo-presença do Bispo o Rosário se faz presente em cena não apenas no nível discursivo a partir da tessitura dramatúrgica de Anderson Feliciano, mas também está evidenciado no cenário, nos pequenos adereços que compõem o palco e no figurino utilizado por Evandro Nunes, que chama a atenção, principalmente, o casaco utilizado, por ter sido confeccionado a partir de um tecido rústico, no qual foram inscritas, por meio de um bordado feito à mão, palavras-fios de lã (linhas), tecidos e que tecem palavras rasuradas como se fossem inscrições mnemônicas que marcam o corpo e a pele daquele sujeito/ Homem x o Bispo x o Homem, não se sabe onde começa um e onde finda a outro.
No obra do Bispo do Rosário, produzida a partir do “lixo” e da sucata, foram encontrados diversos trabalhos em que se destacam navios (o mar, ah o mar…), além de estandartes e o seu famoso Manto que deveria vesti-lo no dia do “juízo final”. Com as suas obras – arte-resíduo-objetos –, o Bispo marcou a sua presença nos espaços em que viveu e transitou e a palavra foi um elemento pulsante de sua vida-obra. Em In Sã, Feliciano e Nunes também utilizam a palavra (em seus múltiplos sentidos sígnicos) e o corpo como pulsão para adentrar no universo do religioso e do profano e tudo isso é corroborado na cena final, onde o cenário, que já tinha sido transformando em mar – espaço de travessia, descobertas e imaginário diaspórico de nossas cenas negras –, ganha outra dimensão quando o corpo do ator (o Homem/ o Bispo) faz dele a representação do Manto Celestial (azul como o céu, com as águas profundas da mar, dos lagos, mananciais e rios). Manto de Nossa Senhora do Rosário (em Nós, para justificar a performance), do Bispo ou de Iemanjá, a rainha dos mares? Não importa. As palavras estão postas para serem ressignificadas e o corpo do ator é apenas um instrumento…
Eu coleciono instantes. Às vezes me sinto assim. Às vezes me sinto assim. Em outras me sinto assim. Nesses momentos penso no mar. E se eu fosse mar? Minha pessoa se faz no limiar entre o tempo e o instante. Nasce do que ainda não é possível delimitar. As formas não são possíveis até mim. Elas se fazem após aquilo que me é possível. O tempo na medida certa. Na medida exata do tempo. O tempo no tempo certo.
É um labirinto.
Um mundo como abismo da alma.
A obra está pronta.
(Feliciano, 2017)
1-Com blackface, peça Trem de Minas estreia com polêmica de racismo em BH – Blog do Arcanjo
2 – Peça ‘Trem de Minas’ gera polêmica com ‘blackface’ – Jornal O Tempo
3 – A íntegra do debate pode ser consultada aqui.
Marcos Alexandre é graduado em Letras pela FALE-UFMG, onde concluiu o Mestrado e o Doutorado. Realizou a pesquisa de pós-doutorado “Brasil e Cuba em diálogo: a cultura afrodescendente em cena”, no ISA – Havana/Cuba, e no PPGAC, da UFBA. Integra o Mayombe Grupo de Teatro. É bolsista do CNPq. Professor Associado da FALE-UFMG, onde atua na graduação e na pós-graduação e também ministra disciplinas para o curso de Teatro; coordena o NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, em parceria com o prof. Eduardo Assis, e o PLTA – Programa Letras e Textos em Ação, em parceria com a profa. Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa.