Por Soraya Martins
Uma mirada a partir da cena Ciberterreiro, do Coletivo Black Horizonte.
Nunca tinha visto Ele em cena. Aquele braço negro com cabeços brancos. Um salve a Ele, a Clementina de Jesus, Elza Soares, Nana Vasconcelos, Bispo do Rosário, Raimundo Nonato e Dona Valdete, a todas as pessoas ali reverenciadas, os que vieram antes de mim, e a Gabi, minha ancestral de hoje. Tambor, tambor vai buscar que mora longe! O tambor foi buscar, entre a boa e a nova vista, na zona leste de belo horizonte, Ele. O tambor reatualizou, ali, um “corpo da história” inscrita não pela palavra-verbo da prática letrada, mas pelo performativo que, como memória incorporada, funciona também como um saber. Saber de Preto Velho.
O “ali” de que falei é o terreiro do “pai attyvista”, que foi transformado e recriado na segunda PRETA. No terreiro-território-quintal, espaço da encruzilhada de saberes e cosmovisões, a música, o cheiro de manjericão, de erva cidreira e das pessoas, as vozes e a arte na sua múltipla dimensão ciber criou – na performance ritual estabelecida- dispositivos ancestrais que jogam com outras formas de habitar o mundo, de conviver e de hackear os códigos coloniais, pois “o terreiro seria o campo (o território de preservação da regra simbólica) delimitativo da cultura negra no Brasil, o espaço da reposição cultural de um grupo cujas reminiscências de diáspora ainda eram muito vivas. […] Guardião de axé e auô, o terreiro é, ao mesmo tempo, aiê e orum, matéria e antimatéria, lugar da irradiação de intensidades, de possibilidades de reversibilização para a sociedade global. […] O limite que ele traz é o do ritual – que joga com a aparência, o segredo, a luta, a ausência de universalizações, a abolição da escravatura de sentidos, esta operadora de encantamento e sedução” (Muniz Sodré).
A prática performativa que se deu ali, naquele ciberterreiro-território, se refere às reminiscências muito vivas, do canto, da música, do espaço, dos cheiros e sensações, das imagens produzidas em cena e projetadas, do jogo estabelecido com o público, e se revela de forma radicalmente dinâmica: mantém a tradição transformando-a. Nessa performance, a cultura da cena, além das marcas, símbolos e formas, se afetiva pelo conhecimento que Ele, Gil, traz em seu corpo quando a executa, na combinação dos seus movimentos no tempo e no espaço.
“Do que o outro necessita?” Na performance ritual realizada no último dia da primeira temporada da segunda PRETA, no dia do guardião dos caminhos e portais, entre ritmo, dança e comida (todos esses elementos simbólicos se encadeiam, de acordo com Sodré, sem relação de causa e efeito – pois não há signo determinante – mas por contiguidade, por contato concreto e instantâneo), Ele, Gil, e Ela, Gabi, vão falar que precisamos de cuidado, com a gente mesmo e com o outro através, também, da arte. “Cantar-dançar- batucar”, comer e beber não é apenas forma, mas uma estratégia de cultuar, entre outras coisas, a memória e o cuidado, ambos exercidos pelo corpo em sua plenitude. Tal plenitude, Zeca Ligiéro me confessou que ele a chama de oração orgânica.
Vi -Ele- em cena. Aquele braço negro com cabelos brancos, aquela presença, no ciberterreiro contemporâneo (é verdadeiramente contemporâneo aquele que estabelece uma relação de dissociação e anacronismo com seu próprio tempo, adere e, ao mesmo tempo, se distancia deste), cruzamento semiótico discursivo, espaço de confluências e mediações, reforçando as relações entre performance, memória, identidades, cura e cuidado. Vi crianças (pela primeira vez tinha na segunda PRETA!), mulheres e homens e me vi celebrando o encontro, a convivência, o olhar e os gestos como possibilidades do próprio discurso policênico-performativo.
“Do que o outro necessita?” De terreiros, territórios, quintais. De plantar relações, cheiros, presenças, vizinhanças e plantas.
A segunda PRETA celebra a sua primeira temporada com a performance da memória, das identidades e do cuidado. Uma oração orgânica. Toda nossa. Coletiva.
Soraya Martins é mestre em Teoria da Literatura pela FALE/UFMG. Graduada em Letras – Licenciatura Português e Italiano. Atriz cofundadora da Sofisticada Companhia de Teatro, formada no Teatro Universitário, cursou Semiologia do Teatro, com Marcos De Marinis, no DAMS – Dipartimento di Musica e Spettacolo da Università degli Studi di Bologna, Itália. Desde 2011, atua no cenário artístico mineiro como atriz e pesquisadora do teatro afro-brasileiro e tem em seu currículo trabalhos realizados junto a diversas companhias, entre elas Cia Candongas, Grupo do Beco e Caixa de Fósforos.