Por Anderson Feliciano
Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Não sou Samsa, mas foi assim que me senti quando, um vizinho, numa brincadeira de rua, por não me portar como ele, me chamou de boiola. Eu, ainda menino pequeno, mesmo sem saber bem o que aquilo significava, me senti um gigantesco inseto.
Os anos se passaram e como nos versos de Susy Shock também reinvindico mi derecho a ser un monstruo / ni varón ni mujer / yo monstruo de mi deseo. Eu e todas as bichas pretas que, com seus corpos e suas poéticas, inventam outras formas de estarem num mundo que insiste em nos objetificar. O que se passou naquela segundaPRETA é da ordem do desejo e pouco tem a ver com as memórias traumáticas de minha infância e aponta para a fabulação de outros formas de estar/ocupar o mundo.
E as portas do Espanca! foram abertas, o show/culto ou o que quisermos denominar, começou:
Velho/Feiticeiro de Kascha (Ouro Preto), Boi Bíblia Bala de Jonata Vieira (Contagem) colocaram lenhas para que O Reino é das bichas de Jhonatta Vicente e Ventura Profana (Belo Horizonte / Rio de Janeiro) incendiassem aquela noite fria. Não sobrou pedra sobre pedra e nossas poucas certezas se diluíram no suor que escorria pelo corpo de Ventura.
De acordo com Yos Piña, migrante-nomádicx em processo vivo de descolonização, dissidente ao regime branco-hetero-capitalista-colonial e intensamente negra, não existe sexo sem racialização e ironiza afirmando que seus Orixás não leram a J. Butler. Não me interessa fazer uma genealogia do conceito queer, mas apontar que as complexidades que a multiplicidade de corpos das bichas pretas ocupando a cena na última segunda-feira, desarticulam algumas poucas certezas e propõe estéticas que nos possibilitam vislumbrar outras poéticas.
Que categorias conceber para pensar aquelas cenas?
Qual a potencia daqueles corpos?
Como bem disse Marsha P. Jhnson, travesti, ativista negra e fundadora do S.T.A.R (Street Transvestite Action Revolutionaries) e uma das mais importantes lideranças da “revolta de Stonewall”, na primeira noite dos protestos: “I got my civil rights!”. E é por eles que ainda marchamos e lutamos. É por eles que nos aquilombamos na segundaPRETA para reivindicarmos o direito de sermos monstras. É por eles que, na contramão desse regime branco-hetero-capitalista-colonial, fabulamos mundos possíveis e fazemos nossas vozes ecoar.
Se considerarmos que o corpo preto é tema, é testemunho, é forma, é palco, é cena, aqueles corpos e suas histórias desconfortáveis que questionavam masculinidades e formas pareciam arquivos vivos que buscavam refazer a colonialidade branca e habitar a fragilidade dos corpos negros e das subjetividades como lugar de resistência. Estavam destinadas a desarmar relatos já construídos.
Quando entramos ele ou ela ou o que quisermos pensar que seja, estava lá, num canto da sala quase escura. Ao som de Naná Vasconcelos se contorce. Seus movimentos, alguns já familiares, vão se expandindo naquele espaço-tempo da cena. Lentamente, vai esboçando imagens que povoam nosso imaginário. Kascha em seu devir velho/feiticeiro parece querer tencionar as armadilhas e identidades que nosso sistema racista tenta nos aprisionar. Sem dimensão do que o trabalho pode ser, ou aonde pode chegar, ressalto a consistência do mesmo, que em seu equilíbrio precário repetia e repetia movimentos que esboçavam uma frágil cartografia dele mesmo. Na tentativa de nos incomodar, como apontou no debate, o silêncio e a repetição eram aliadas.
Também querendo nos incomodar, Jonata Vieira sentado no meio do público lia seu texto. Deslocando o foco do expectador, o performer numa concepção simples e muito potente, por alguns minutos repetia as palavras boi, bíblia e bala. Sua voz ecoava. Nossos ouvidos e nossos corpos e nossas bocas eram atravessados por aquelas palavras. E Jonata insistia. Repetia. Repetia. Repetia. Mas ao longo da performance, a potencia do trabalho não se sustentava. Ao meu ver, ingenuamente, ele insistia numa narração que pouco anunciava. O querer incomodar que a principio gerava linhas de fuga com a repetição das palavras no encontro com o texto perdia sua força e de forma reducionista só podia mesmo incomodar como nunca havia visto numa segundaPRETA.
Como conceber esteticamente o desejo de incomodar?
E sim! O reino é das bichas. Berrava a monstra Ventura. Ao instaurar seu culto ao som poderoso da Jhonatta Vicente aquele espaço-tempo desconstruiu certezas, borrou com seu suor as brancas páginas de nossos conceitos e ainda apontou o cu na nossa cara. Precisaremos agora inventar outras CUlturas que dêem conta de nossos corpos e nossa complexa forma de estarmos no mundo. E elas ainda dançam. Pregam uma nova ordem. Anunciam o Apocalipse. O reino é das bichas. Ao elaborarem uma proposta estética suja, mal acaba, mal alinhada, cheia de vida e falhas, estabelecem outros parâmetros, abrem precedentes para pensarmos outras formas, incendeiam as bases do tradicional culto cristão e anunciam que a deusa delas é uma mulher trans e seus mandamentos elas mesmas inventam.
Como conceber a intensidade daquele acontecimento?
Ao apoiar-me numa ideia política da estética, desejo ampliar as perspectivas, para pensarmos de que maneira a poética de corpos e vozes marginalizadas podem rasura e borrar as brancas páginas da história das artes e ainda ampliar nossos olhares para a sociedade em que vivemos. Sabemos que a carne mais barata no mercado é a carne negra. E em se tratando da carne das bichas pretas o preço é ainda mais barato. A classificação racial e de gênero nos corpos colonizados e o racismo operam como combustível para a necropolítica. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções mortais do estado. Estados nações construídas por peles não brancas. Peles que resistiram ao massacre colonial. Peles negras, subjetividades negras que foram representadas a partir da imagem de força, virilidade e hipermasculinização como imagem hegemônica. Imagens que certamente reproduzem resistência. Isso continua a consolidar o poder dos discursos binários e racistas em torno dos corpos negros: civilização – barbárie, masculinidade – feminilidade.
Me parece interessante neste momento abrir um diálogo com a pergunta feita por Mário Rosa em Sobre as rachaduras, os corpos e o desejo de desmonte: Qual o martelo eficaz pra demolição dos edifícios arRUINAnados constituídos de um passado conservador que ainda estrutura nossa vida social?
Talvez pelo cu como apontou Ventura. Talvez o cu seja um caminho possível. Não a salvadora da pátria, mas uma norteadora para desarticulação desse opressor regime branco-hetero-capitalista-colonial.
E como cantado deliciosamente, na polca do Cu, no filme Tatuagem: tem cu pra todo mundo.
Anderson Feliciano é Mestrando em Dramaturgia e Pós – graduado em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (2009) pela PUC – Minas, além de Performer e Dramaturgo. Desde 2007 vem desenvolvendo projetos focados nas questões raciais e de gênero. É autor dos livros infantis “A Verdadeira História do Saci Pererê” (2009) e “Era Uma Vez em Pasárgada” (2011). Foi vencedor do Primeiro Prêmio de estímulo a novos dramaturgos promovido pelo Clube de Leitura (Belo Horizonte – 2011) com o texto “Pequenas Histórias de trocas de pernas, peles e olhos nos seus arroubos e arredores” e ainda teve o texto “Antes que Aconteça Muita coisa Pode Acontecer” selecionado para uma leitura dramática no concurso promovido pelo projeto Negro Olhar (Rio de Janeiro – 2011). já escreveu textos dramáticos para companhias de Brasil, Chile e Argentina. Como performance há participados de festivais por vários países da América Latina.