Por Anderson Feliciano
Não era meia noite em Paris. Eram 8 horas da noite em Belo Horizonte, numa segundaPreta. Na encruzilhada das ruas escuras do baixo belô, com casa lotada e gente espalhada até o teto e ainda com as bênçãos de Exu adentramos no universo marginal e obsceno de Carolina Maria de Jesus e Charles Bukowski.
Tendo como ponto de partida obras literárias de escritores tidos como marginais, o grupo Nóis de Teatro (CE) com sua Despejadas e o Coletivo Amarginal (BH) com sua A Reticência do Ser com seus processos colaborativos abrem precedentes para pensarmos uma cena preta polifônica que surge, a meu ver, do resultado de pensamentos coletivos e de uma visão artística compartilhada. Visão muitas vezes sustentada por nossas memórias traumáticas, uma estética precária e corpos pulsantes que surgem como interrogantes.
Pela terceira vez nessa temporada, nossa querida Vedete da favela e as múltiplas vozes de seu Quarto de Despejo ecoaram e de forma contundente atualizaram um passado que insiste em não passar. Fruto de um processo colaborativo a cena Despejadas não representa mais a voz de uma autora, mas articula no embate de diversas vozes envolvidas na criação de um sistema polifônico e complexo um jogo muito potente. Em consonância com esse jogo de vozes a presença dos corpos de Amanda Freire, Kelli Enne Saldanha e Nayana Santos arquitetavam uma poética capaz de fissurar aquele silenciamento imposto a mulheres negras há séculos. Era no desencontro da potência desses corpos/vozes com o sistema eugenista que estava sendo representando que frágeis imagens de nós mesmas foram desarticuladas.
No primeiro momento, de forma mais representativa, duas atrizes nos recebiam em sua casa para um café. Enquanto preparavam o mesmo conversavam sobre o cotidiano de pessoas que vivem nas favelas. Com ações simples como coar café, cortar o pão e servi-los ao público elas iam costurando as diferentes vozes que povoavam aquele universo. Já num segundo momento, de forma mais performativa, vemos um “bicho” entrar em cena.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
o bicho, meu Deus, era uma mulher.
E ela sempre esteve lá. Invisibilizada, mas sempre lá. Não a vimos, mas ela estava lá e também tinha voz. E por isso falava, explicava, confessava, acusava, gritava, cantava e inventava linhas de fuga. Seu corpo e sua cor não cabiam naquele sistema imposto, mas ela permanecia lá. O corpo dela gritava. O grito do corpo dela e as outras vozes fissuravam outra vez a possibilidade de qualquer piedade. Ele era altivo, forte na sua fragilidade gorda e desnuda. Já não podem mais silenciá-la. Então as luzes se apagam.
Despejadas e sem saber pra onde irmos, encontramos no meio do caminho um bar. Somos convidadas a sentarmos e a fazermos parte daquele jogo “obsceno” como os escritos de Bukowski, que é uma proposta recorrente nos trabalhos do Coletivo Amarginal.
Naquele mundo marginal, repleto de cigarros, bebidas, corpos outros, inventado pelo coletivo a potência dos corpos de Rauta, Gabriel e Rafael eram o que, a princípio, instaurava uma poética desestruturante. Coletivo que tem uma instigante investigação no campo da performance e que sempre aposta na precariedade do humano e numa estética suja e obscena não se intimidaram e saltaram no escuro. Fiéis aquilo que acreditam e sem medo de errar, apresentaram um experimento cênico performático que perdia sua potência numa concepção naturalista. Ao tentarem representar um conflito que girava em torno do feminicídio inventaram uma coreopolítca que se sucumbiam no universo da teatralidade e o jogo não se instaurava. Mas aqueles corpos insistiam em pulsar e com isso traziam, mesmo que frágeis, rastros de um processo de investigação, no mínimo curioso e que merece ser melhor aprofundado.
A poética particular dos escritos de Gabriel se perdia naquele universo bukowskiniano e não dialogava com a dramaturgia sonora composta por Rauta e ainda com a forte presença de Rafael. Até resultava desses desencontros algo interessante, mas que não se sustentava naquele espaço/tempo ficcionalizado por eles. Enquanto isso os sorrisos negros de Rauta, Gabriel e Rafael de fato nos traziam felicidade. Do corpo desequilibrante de Rafael Santos resultaram os momentos mais interessantes da proposta. Seu jeito de corpo perdido naquele gestual violentamente delicado, seus olhares assustados e sua relação mais sincera para com o público abriam brechas que nos permitiam vislumbrar a força da união de um jovem artista talentoso em diálogo com a viceralidade do coletivo.
E pouco depois das nove horas da noite fomos expulsas do bar.
Nina Caetano:
* A textura polifônica de grupos teatrais contemporâneos.
* A performance morreu? Antes ela do que eu. (2011)
Anderson Feliciano é Mestrando em Dramaturgia e Pós – graduado em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (2009) pela PUC – Minas, além de Performer e Dramaturgo. Desde 2007 vem desenvolvendo projetos focados nas questões raciais e de gênero. É autor dos livros infantis “A Verdadeira História do Saci Pererê” (2009) e “Era Uma Vez em Pasárgada” (2011). Foi vencedor do Primeiro Prêmio de estímulo a novos dramaturgos promovido pelo Clube de Leitura (Belo Horizonte – 2011) com o texto “Pequenas Histórias de trocas de pernas, peles e olhos nos seus arroubos e arredores” e ainda teve o texto “Antes que Aconteça Muita coisa Pode Acontecer” selecionado para uma leitura dramática no concurso promovido pelo projeto Negro Olhar (Rio de Janeiro – 2011). já escreveu textos dramáticos para companhias de Brasil, Chile e Argentina. Como performance há participados de festivais por vários países da América Latina.