por Anderson Feliciano
Ainda no seu caminhar tropeçante e sob as bênção de Exu, a segundaPRETA deu inicio a sua 4ª temporada e continua firme na lapidação de pensamentos que possam ampliar as possibilidades de se pensar uma cena que, se valendo dos códigos da negrura, nos possibilite fabular sobre outros possíveis mundos, outras múltiplas imagens de nós mesmos. Frágeis imagens que alargam nosso negro universo simbólico.
Prologo:
Na noite calorenta do dia 19 de março de 2018, nas encruzilhadas da vida, dois homens pretos, assim como João Cândido, bordam um espaço/tempo de uma nova produtividade.
Primeiro Ato:
Estamos todos sentados. Ele entra. Está tudo escuro. Ele entra todo vestido de preto. Ele também é preto. Naquele espaço/tempo fabulado por Preto Amparo, ele é tema. O corpo dele quer se expandir. Ele inventa uma espécie de mapa. Dentro dessa espécie de mapa estão cercadas nove laranjas. Ele veio se despedir. Não sabemos de quem. Refere-se a todo tempo há um ele. Se burlando do lugar de fala, ele fala. Ironiza e ninguém fala nada.
Ele tenta sentir e é ou quer ser-humano e “vocês estão tristes”.
Segundo Ato:
Estamos todos de pé. Ele sai. Não está tudo escuro. Ele sai vestido de palhaço. Ele também é preto. Naquele espaço/tempo fabulado por Rodrigo Santos, na rua, ele é sujeito da cena. O corpo dele se expande. Ele inventa uma coreografia em que nossos corpos bailam juntos. Ele veio fazer rir. É um corpo preto lançando mão da linguagem clawnesca que mistura códigos da negrura e inventa um modo de brincar.
Entreato:
Fazendo uso de uma formulação sintética de Fanon: “não há negro, há negros”, trago para um diálogo crítico os trabalhos de Preto Amparo e Rodrigo Santos que realizam um deslizamento, ainda que sutil, da ideia inequívoca de uma política da identidade. Cada um a seu modo esquiva-se do famigerado essencialismo imposto pelo olhar do outro. Tanto Pedro, quanto Rodrigo compreendem que “o corpo preto é tema, é testemunho, é forma,
é palco, é cena”. (1)
O esforço da analise não se pretende ser comparativo, almeja, ao colocá-los juntos, lado a lado, reivindicar a “liberdade como condição primeira e inalienável de toda produção artística”.(2) Parece-me relevante, nesse momento, pontuar mais uma vez, que se trata da abertura da nossa 4ª temporada e os trabalhos apresentados engrossam o caldo e
somam vozes ao manifesto que articula a pluralidade de temas, formas, materiais e motivos.
Terceiro Ato:
Está tudo escuro. Escutamos Jorge Ben. Ele parece não caber naquele corpo. E no esforço de ir além, cria-se uma coreopolítica que desarticula lugares de fala. E ele continua falando. Ele e o corpo falam. A potência do corpo parece se perder no excesso de palavras. A irônia, no decorrer do trabalho, se perde. Mas as laranjas se movem.
Quarto Ato:
O jogo continua. Estamos todos e todas abertos ao sentir. O riso nos aproxima e se instaura um nós que é circular. O palhaço se move. A coreopolítca aqui é outra. É um outro jeito de corpo. É um aberto para o outro. Os corpos se tocam, se abraçam, existe um campo de cuidado e respeito que se intensifica ainda mais o jogo.
Coro I:
O corpo dele. As laranjas. O chapéu. O saco plástico. As laranjas no saco plástico. A mão, se me lembro bem, a direita, suando no saco plástico. Preto Amparo, em fabulação, propõe um jeito de juntar estética, memória e política. Lá, a palavra surge como potência e limite. O que pode vir depois do abandono? Encontrar as palavras que coincidam com o sentir não seria uma proposta política que falta ao que vemos no experimento?
Coro II:
O palhaço preto de Rodrigo Santos em seu Caçador de risos desenha sutilmente uma cartografia do riso, dos corpos, dos limites, dos clichês e instaura um jeito delicado de transversalizar com leveza corpos, gêneros, estilos … ultrapassa riscos e sustenta a alegria de um junto.
Encruzilhada:
Endereço Postal de Preto Amparo e o Caçador de Risos de Rodrigo Santos, juntas, lado a lado, abre pra se pensar um devir-negro no teatro. Surge no esforço de análise dessa afirmação a proposta de quebrarmos o brinquedo, desarticularmos uma ideia de “somos todos iguais” e indícios para se pensar uma cena negra que não representa nada, mas apresenta “linhas de transformação que saltam para fora do teatro e assumem uma outra
forma, ou se convertem em teatro para um novo salto”. (3)
(1) José Fernando Peixoto de Azevedo
(2) Hélio Menezes
(3) Gilles Deleuze
Anderson Feliciano é Mestrando em Dramaturgia e Pós – graduado em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (2009) pela PUC – Minas, além de Performer e Dramaturgo. Desde 2007 vem desenvolvendo projetos focados nas questões raciais e de gênero. É autor dos livros infantis “A Verdadeira História do Saci Pererê” (2009) e “Era Uma Vez em Pasárgada” (2011). Foi vencedor do Primeiro Prêmio de estímulo a novos dramaturgos promovido pelo Clube de Leitura (Belo Horizonte – 2011) com o texto “Pequenas Histórias de trocas de pernas, peles e olhos nos seus arroubos e arredores” e ainda teve o texto “Antes que Aconteça Muita coisa Pode Acontecer” selecionado para uma leitura dramática no concurso promovido pelo projeto Negro Olhar (Rio de Janeiro – 2011). já escreveu textos dramáticos para companhias de Brasil, Chile e Argentina. Como performance há participados de festivais por vários países da América Latina.