Sobre a impureza do branco

Por Soraya Martins

Reflexões e expansões a partir dos trabalhos cênicos Frágil, Eu?, Burraco-Saudade e Elas também usam Black-Tie.

Foto: Pablo Bernardo

No último dia da terceira temporada da segundaPRETA, o público foi brindado com sete mulheres em cena. Foram três trabalhos que, por coincidência da Deusa, dialogaram entre si e nos ofereceram possibilidades de expansão para se pensar, mais uma vez, sobre teatro, as questões caras para os corpos femininos da negrura no palco, as fissuras e os processos criativos.

Frágil, Eu?, de Suellen Sampaio e Evandro Nunes, tecido a partir de trechos de livros como “Mulheres, Raça e Classe”, de Angela Davis e “ Rosa Parks- não à discriminação”, de Nimrod, traz para a cena o quotidiano, as dificuldades e as solidões da mulher negra. Elaborada a partir da repetição de gestos e movimentos, nos voleios do corpo da bailarina Suellen, que sentada em uma cadeira, “protegida” por um véu branco de tule, remetendo, ao mesmo tempo, a um vestido de noiva e a um leito nupcial, Frágil, Eu? borda fragilidades ao forjar o lugar de fala da mulher negra marcado por uma concepção romântica de afeto, em que a mulher ainda precisa do outro para se realizar. Uma partitura de movimentos e gestos. Repetição. Exaustão. Exaustão. E o que emerge dessa repetição-exaustão? Como tecer, “partiturar” gestos outros criativos que possam ressignificar dores, traumas, quereres e desejos de um corpo mapeado por práticas de identidades individual e coletiva racializadas e marcada pelo gênero? A repetição é somente para dar a ver o posicionamento socioeconômico e afetivo de eterna limiaridade dessas mulheres? Como expandir gestos e perspectivas? Me lembrei de Nola Darling, a protagonista da série “Ela quer tudo”, escrita e dirigida por Spike Lee. A Nola se realiza nela e por ela mesma e faz da exaustão e das dificuldades de, por exemplo, ter que pagar o seu aluguel para conseguir morar no Brooklin, comprar material para compor seus quadros, ser artista, material mesmo para sua realização pessoal e profissional. Para se recriar positiva e constantemente Nola Darling.

Quando se pensa em colocar o corpo feminino da negrura em cena…. como ampliar o foco do olhar e mediar esse corpo com criatividade e subjetividades outras, com axé para além do que se pode ver?

Foto: Pablo Bernardo

Questionamentos aparecem para criar situações de precariedade, de tropeço e, também, de queda. Pensando a queda, claro, como possibilidade de criação de outras poéticas e subjetividades, porque Elas também usam Black-Tie (cena de Andréa Rodrigues, Gislaine Reis, Rainy Campos e o músico Leonardo Brasilino, com direção de Lira Ribas), usam mais do que Black Tie, usam três corpos de mulheres para transformar as dores de ser mulher preta em vários âmbitos – das relações familiares, passando pelo “eu namoraria você se não tivesse dando um tempo”, até as relações abusivas no trabalho – em Jazz.  O percurso que vai da confirmação das relações de opressão até o ato de vingança/luta é tecido por uma ironia, não uma qualquer, mas uma ironia melancólica no sentido de “rir” da exposição de uma ferida aberta: o racismo nas suas dimensões mais perversas. Elas tensionam esse riso melancólico e dele fazem emergir três microproduções do desejo que irrompe com uma passividade. No Jazz: três corpos-presenças tecendo um cantopolítico que faz do ressentimento potência criadora, que no jogo da cena tenta mudar padrões coloniais do ser, do saber e do poder em ato estético-performativo. Elas também… são corpos culturais, de enunciado e enunciações pretas, em semiose e semióticos, significando, performatizando identidades, produzindo outras possibilidades subjetivas, éticas e estéticas em arte.

Cava,

Cava,

Cava…

E chegamos no Buraco-Saudade, de Ana Martins, Michele Bernadino e Rikele Ribeiro, que, de início, com fita crepe demarcam no chão o espaço teatral e estabelecem o jogo de ficção versus realidade. O palco está montado! Todas vestidas de noiva. Mulheres que “desde cedo aprenderam que era importante vestir o branco sagrado do matrimônio, só não sabiam que o vestido não era feito para seus corpos”.[1] O tema é recorrente e urgente: a solidão da mulher negra. Os desejos, os sonhos e as incompletudes dessas mulheres são tecidos através de histórias ficcionalizadas mescladas com histórias reais e memórias do que nunca se viveu. Buraco-Saudade é um experimento que lança mão da ironia e do deboche: “A deusa me livre de ter um namorado, mas quem me dera!” Três mulheres que acreditam desacreditando no amor salvador, daí o jogo que potencializa a proposta cênica via ironia e deboche. Aqui, esses dois elementos são usados também como forma estética, com total consciência de que a ferida afetiva, racial e de gênero ainda está aberta. Três personagens que tem quereres afetivos, querem se realizar, mas, e sobretudo, entendem que primeiro precisam ressignificar os seus lugares sociais como/de mulheres negras. Três Nolas Darling (acabei de assistir toda a série!) que se recriam na e pela dor,  e melhor, traçam outro devir poético- linguagem-  a partir dessa própria dor.

E borda-se lagartas nas borboletas dos nossos carinhos…

E assim se deu a terceira temporada!

O que esperar da quarta? Eu pessoalmente espero, nesse quilombo, deslocamentos, fissuras, equilíbrio precário, exatamente para continuarmos quilombo.

Foto: Pablo Bernardo

[1] Trecho da peça Engravidei, Pari cavalos e Aprendi a voar sem asas, de Cidinha da Silva e do grupo teatral “Os Crespos”.


Soraya Martins é Doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Teoria da Literatura pela FALE/UFMG. Graduada em Letras – Licenciatura Português e Italiano – UFMG. Formada no Teatro Universitário (TU – UFMG), cursou Semiologia do Teatro no Dipartimento di Musica e Spettecolo dell´Università di Bologna, Itália. Desde 2011, atua no cenário artístico mineiro como atriz e pesquisadora do teatro negro brasileiro. Escreve críticas teatrais para o blog Horizonte da Cena e para o projeto segundaPRETA. Tem seu currículo trabalhos realizados junto a diversas companhias, entre elas, Companhia Candongas e outras firulas, Grupo do Beco, Caixa de Fósforos e, atualmente, trabalha com o Grupo Espanca.