Por Adilson Marcelino
Foto: Pablo Bernardo
“Tá lá o corpo estendido no chão”.
Há muito que, no Brasil, homens e mulheres pretos e pretas e pobres jazem nas calçadas, nas favelas, nas vielas, nos barracos da cidade. Ainda assim, a turba caminha, e só não vale mesmo morrer atrapalhando o trânsito.
Quando se achava que o país deixava para trás, pelo menos em certa medida, a imagem de Republiqueta de Bananas, mais um golpe se deu e, desta vez, levando todos e todas em retrocesso de século.
Viramos, trabalhadoras e trabalhadores, o povo pré-CLT. Para muitos, inclusive, aquilo tudo foi apenas um hiato e voltamos a ser o que sempre fomos. Corpos estendidos. E quase mais nada que isso.
E é nessa realidade dura que habita a mulher mãe de Anair Patrícia em “Dar a Luz”, apresentado na segundaPRETA, no dia 9 de outubro de 2017.
O impacto já está na sinopse. Raramente se vê uma síntese tão apropriada, tão crua e acachapante:
“Dar a luz. Dar os filhos. Fazer mais que o governo faz. Ela faz e dá destino”.
Pois a mulher mãe encarnada por Anair é um rascunho de mulher, é um rascunho de mãe.
Como mulher, não é dona do seu corpo. Está à mercê. Do abuso doméstico. Da violência doméstica. Seus coitos são estupros, em que o medo e o pavor estampados em sua cara e em todo o arrepio de seu corpo revelam um não ser-mulher, um não ser-sujeito.
Já como mãe se reduz ao fazer, ao gestar, ao parir, ao entregar, ao vender. É aí que se torna a mulher possível. A mãe possível.
Não porque não queira sê-la, não porque não queira seus filhos. Mas ao entregá-los, ao vendê-los, dá-lhes um destino. Quem sabe melhor que o seu?
E por isso se diz que aí se faz Estado. Pois dá destino. O que ele, o Estado, negou-lhe e nega a milhares de mulheres negras e pobres.
Entregar. Vender. Não é escolha. Não, não é escolha. É dor. E imensa.
Anair Patrícia tem trabalho potente na educação com a periferia. Sua cena tem dramaturgia inspirada no texto “Dar a luz”, de Marcelino Freire. E é também resultado de pesquisa in loco, de ouvir vozes, de registrar relatos.
Essa mulher mãe, essa não mulher, essa não mãe trazida à cena é como um açoite. É como um aviso. É como um lembrete.
Que país é esse. Do que ele é feito. E o que ele faz com suas filhas e seus filhos.
Como notável atriz, Anair Patrícia consegue trazer para a cena essa mulher violentada em grau máximo. Em miséria máxima. Quase a personificação da Canção Desnaturada. Como se, na verdade, essa mulher mãe, essa não mulher, essa não mãe, encarnasse os versos duros do poeta, mas com um destino que gostaria de dar para si mesma: “Pelo cordão perdido, te recolher pra sempre à escuridão do ventre, curuminha, de onde não deverias nunca ter saído”.
Foto: Pablo Bernardo
Adilson Marcelino é negro, jornalista, assessor de imprensa cultural, pesquisador de cinema, criador e editor do site Mulheres do Cinema Brasileiro.