Por cima do mar da ilusão eu naveguei

Por Anderson Feliciano, Evandro Nunes e Mário Rosa

Miradas sobre Abena e o teatro negro para os pequenos.


Foto: Demétrio Alves

E foi assim, como num passe de mágicas, em meio a bolas de sabão, instrumentos musicais, árvores, sorrisos, movimentações e expectativas pra contação, tecidos coloridos, crianças, adultos e tantas outras coisas que saltavam ao nosso olhar, que a Cia. Bando nos apresentou Abena, numa área aberta do Parque Municipal, domingo pela manhã, abrindo nossa primeira segundaPretinha.

Insistindo no propósito de pensar a segundaPRETA como um espaço de visibilidade, de experimentação de novas narrativas e também deslocamentos de imaginários, vemos com entusiasmo a oportunidade de direcionarmos a atenção para o universo infantil. Quase sempre tratado ao longo da história com pouca atenção, apesar de muitas iniciativas recentes de valorização deste segmento das artes cênicas, o teatro feito para as crianças anima pelo que pode apresentar de universos imaginados, de  ludicidade, de experimentação, de fabulação de mundos … enfim, o jogo e a invenção, sem necessariamente está comprometido com intencionalidades pedagógicas.

No que se refere especificamente ao universo caro à segundaPRETA, acreditamos que o termo afrobetização, que se dá em várias frentes pra toda vida, envolve o campo das artes de muitas maneiras. Nos modos de narrar, no que se narra, nas escolhas formais, nos jeitos de corpos, na musicalidade que também conta a história, nas espacialidades escolhidas e no jogo com a plateia. Nesse movimento,  costura-se tramas com miradas  que podem falar muito, explicitamente ou não, de como segmentos sociais desejam, sonham, enfrentam realidades, subvertem a ordem do mundo e se relacionam.

Tudo isso pra dizer que a obra Abena da Cia. Bando se insere na busca dessa arte poeticamente comprometida. Na investida de um teatro infantil, com foco na contação de histórias, o trabalho de jovens artistas negros da cidade encara o desafio do encontro com público infantil em espaço aberto e assumem com coragem o risco e a delícia de outras histórias, de possíveis jogos e despertares.

Se podemos resumir a história da peça, diríamos que Abena narra a disputa acirrada, num reino imaginário, entre a chuva e o fogo pelo coração da linda princesa negra Abena. Parece pouco neste “era quase uma vez!”, porém o que acontece em cena revela muito mais pela boa mescla de elementos: jogo dinâmico, colorido, musical, interativo, aberto ao inusitado, bem humorado e poético.

Inventou-se assim um modo de brincar.

Um modo que segue a representação e apresenta outras identificações, um modo que não esquece do jogo, da prova dos 9 e que ousa na dramaturgia ir além de um imaginário de referência pra pensar outros encontros, outros corpos, outras possibilidades de integração e aproximação com o mundo que não a hierarquia antropocêntrica.

É importante para a boa investida desse trabalho a presença entusiasmada e forte das atrizes e do ator em cena. Talentosas e de instigante inteligência cênica, elas são também referência pelo protagonismo que é aqui relevante comentar: atores negros, corpos negros, um pensamento poético que atravessa esses corpos, a leveza e a beleza de jeitos de corpos tecendo a trama desta cena.

São agulha, linha e tecidos.

E é nesta costura que o jogo aberto se faz, como a subversão sutil e a impressão de que eles tecem o lúdico da cena com a leveza de bolinhas de sabão …

e com os olhos e a força da Andréa,

com o jeito arisco da Rainy,

com o sorriso bonachão do Anderson e

com a ironia da Fabiana …

tudo pra manter as bolas no ar no tempo suspenso deste era uma vez.

E nesta trilha, o que fortalece ainda mais a obra é a aposta dessa turma que faz da limitação da história desafio pra utilizar vários recursos com o propósito de não perder a narrativa e manter a interação com a plateia infantil. Conseguem em grande parte realizar esse desafio pelo rivalidade que expõe em cena entre os personagens e pelo recurso de leve distanciamento que faz do público cúmplice de um pacto ficcional: a piscadela que firma o jogo e convida à imersão em cena.


Foto: Demétrio Alves


Anderson Feliciano é Mestrando em Dramaturgia e Pós – graduado em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (2009) pela PUC – Minas, além de Performer e Dramaturgo. Desde 2007 vem desenvolvendo projetos focados nas questões raciais e de gênero. É autor dos livros infantis “A Verdadeira História do Saci Pererê” (2009) e “Era Uma Vez em Pasárgada” (2011). Foi vencedor do Primeiro Prêmio de estímulo a novos dramaturgos promovido pelo Clube de Leitura (Belo Horizonte – 2011) com o texto “Pequenas Histórias de trocas de pernas, peles e olhos nos seus arroubos e arredores” e ainda teve o texto “Antes que Aconteça Muita coisa Pode Acontecer” selecionado para uma leitura dramática no concurso promovido pelo projeto Negro Olhar (Rio de Janeiro – 2011). já escreveu textos dramáticos para companhias de Brasil, Chile e Argentina. Como performance há participados de festivais por vários países da América Latina.

Evandro Nunes é Pedagogo, Ator e Arte Educador. Mestrando em Educação pela FAE/UFMG, 2017. Especialista em Educação para as Relações Étnico-raciais, UNIAFRO/UFOP, 2015.Pós-graduando lato sensu em Ensino e Pesquisa no campo de Arte e Cultura pela Universidade do Estado de Minas Gerais. Fez parte da Equipe de Formadores do Projeto A cor da Cultura, TV Futura/ Fundação Roberto Marinho. Prestou serviço à Associação Religiosa e Cultural de Culto Afro-Brasileiro Ilê de Keto Axé Alafin Odé, junto com a Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial de Belo Horizonte, 2011. Fez parte da equipe de Curadores do 16º Festival de Teatro Estudantil – FETO. Integrou a Banca Examinadora do trabalho de Conclusão de Curso Intitulado “Brincar e Foliar – é so começar: perspectiva de um experimento na implementação de história e cultura afro-brasileira na educação infantil”, UFMG/Escola de Belas Artes, 2016. Preside a NEGRARIA – Coletivo de Artistas Negros/as. Ganhador do Troféu Zumbi de Cultura, categoria teatro, 2015. Há 20 anos dentro da área artística, tem experiência em Atuação, Direção Teatral, Produção Cultural, Coordenação Artística e Pedagógica, além de ser professor de teatro.

Mário Rosa é Historiador, mestre em arte e educação pela FaE-UFMG, dramaturgo e professor.