Sobre tranças e estilhaços

Por Soraya Martins

Uma mirada a partir dos experimentos cênicos Ama, do Espaço Preto, e Sem Dono, de Will Soares.

Foto: Pablo Bernardo

Um salão de cabeleireiros com música que guarda e resguarda relações de afeto e quilombagem. Búzios. Um salão que mais que alisar ou relaxar os cabelos, no eufemismo linguístico e real das camuflagens de nossas pretices, trança os cabelos e os tempos. Esse é o cenário escolhido pelo Espaço Preto para tratar de sua Ama, experimento cênico que relê o mito grego de Medeia a partir de um contexto afrobrasileiro e, mais ainda, de um olhar afrocentrado, que mira da periferia, com corpos pulsantes que também falam da experiência do vivido.

O Espaço Preto foi ao mito, mas a partir de Agostinho Olavo, lá no Além do Rio, uma das peças que integra Dramas para negros e prólogos para brancos, de Abdias do Nascimento, em que Medeia é uma rainha africana, apaixonada por um branco, que mescla ritos culturais em terras brasileiras. A Medeia aqui é mãe e mulher negra, que no relaxamento tenta eufemizar sua negrura, e mulher numa relação interracial que exige dela se afastar do seu salão-terreiro-terreno – espaço de trocas, de conhecimentos contestatórios e de (re)afirmação de identidades e de memórias compartilhadas que voltam ao passado e dele faz emergir uma interpretação outra sobre os modos pretos de sobrevivência, vivências e fluidez. A Medeia aqui é, antes de tudo, Njinga, filha de Iansã, não mata os filhos para se vingar da traição do marido com uma mulher branca, ela trança os cabelos.

Esse trançar não se dá com uma ação em cena (que beleza se fosse!) e sim pela encenação da linguagem, mas nem por isso perde a força ao performatizar experiências e vivências em continuo movimento de recriação, remissão e transformação. Não mato, tranço. Esse trançar fala do lugar da estética tanto do corpo feminino, de afirmar identidades, de ser também político quanto do lugar de, esteticamente, elaborar as feridas de Njinga, mas, repito, só no plano da linguagem falada. E se fosse para a cena, no corpo-texto da atriz e do ator, esse trançar que inicia e mantém o cultivo da cultura da diáspora, liga as lutas dos tempos e, em cena, seria um modo de realizar um pensamento, um saber em ato estético-performativo?

E as tranças aneladas na improvisação que borda os restos, resíduos e vestígios …

Foto: Pablo Bernardo

Sem dono. Experimento de Will Soares que coloca em cena fragmentos, fatias de vida de quatro personagens: a mulher que vive no seu mundo dentro de um saco preto, a mulher que só queria uma festa de aniversário, a batalhadora do telemarketing e a mulher, a mesma do telemarketing, que sonha seu sonho de bailarina. Ou todas seriam fragmentos de uma mesma mulher?

Todas elas falam, de certa forma, de lugares de vulnerabilidade da existência, mesmo quando são apresentadas ao público via ironia e riso. Aliás, o riso aqui é um riso da tensão, ressentido porque se ri da falta, do não poder sonhar, das estratégias tecidas, entre um telefonema e outro de clientes que só querem mandar e solucionar os seus problemas, para ter minimamente dignidade.

Sem dono é composto por estilhaços, fraturas, cacos, ruídos de cenas independentes no todo do experimento. Esses estilhaços, de vidas e de existências e de escolha estética, entram em total contradição com uma representação dramática centrada, composta na perspectiva de um olhar único e de um princípio organizador, cuja progressão obedece às regras de um desdobramento em que as partes individuais engendram necessariamente as seguintes, coibindo os vazios e os começos sucessivos. No experimento, o fragmento induz à pluralidade, à fissura, à multiplicação dos pontos de vista. A fragmentação aqui passa a ser o princípio estético em si. Os quatro fragmentos de cena não são a metáfora ou a metonímia do todo. O mundo é partido, e é inútil pôr-se à procura de um efeito qualquer de quebra cabeça ou de uma lei ordenadora. O que parece mais interessante em Sem dono, nas fatias de vida ali performatizadas, é encontrar exatamente o que não chegou até a nós, o que ficou nas fendas ou o que talvez falte.

E sobre faltas…

No âmbito da cena contemporânea negra, me vem uma questão tão cara quanto à questão de como atuar de maneira diferente nossos mesmos dramas, que é a discursividade: estamos produzindo textos a serem proferidos em cena? A cena é o lugar da transposição direta dos lugares de enunciação sem mediação textual (a palavra) criativa?

Tranças que trançam Sem Dono, Ama, nossa cena e me trançam apertando desde a raiz.


Soraya Martins é Doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Teoria da Literatura pela FALE/UFMG. Graduada em Letras – Licenciatura Português e Italiano – UFMG. Formada no Teatro Universitário (TU – UFMG), cursou Semiologia do Teatro no Dipartimento di Musica e Spettecolo dell´Università di Bologna, Itália. Desde 2011, atua no cenário artístico mineiro como atriz e pesquisadora do teatro negro brasileiro. Escreve críticas teatrais para o blog Horizonte da Cena e para o projeto segundaPRETA. Tem seu currículo trabalhos realizados junto a diversas companhias, entre elas, Companhia Candongas e outras firulas, Grupo do Beco, Caixa de Fósforos e, atualmente, trabalha com o Grupo Espanca.